sábado, fevereiro 28, 2009

MILLÔR


SINCRONICIDADE (OCASIONALIDADE)

Bem, todos vocês já leram o livro de Jung (é, Jung, aquele mesmo que vivia brigando com Freud, como duas tias velhas, tipo Walter Matthau e Jack Lemmon) intitulado Sincronicidade. Pois é, o Jung sacou essa da sincronicidade. Claro, só falo nisso porque estudei muito, li tudo que podia e não entendi nada. Assim posso explicar pra vocês.

A gente está acostumado a pensar como pensa porque se acostumou a pensar assim. Por exemplo: tudo tem causa. Mas Jung – e muitos outros partidários do inconsciente coletivo ou meia-bomba – gosta de acontecimentos acausais. Não adianta procurar de onde vêm. Acontecem porque acontecem e estamos conversados. Vai daí Jung escreveu o tal livro, no qual dá vários exemplos de Sincronicidade. Não morei no negócio. Fui despejado. Mas decidi que essa Sincronicidade é apenas a minha Ocasionalidade, uma excepcionalidade excepcional, absolutamente impossível. Não, não falo de coincidenciazinha. Falo de conjunção de acontecimentos que nem mesmo a estatística que dá a Lula 84% de popularidade conseguiria.

Exemplo: há duas semanas escrevi, nesta mesma página de espetáculos, esta nota:

"Leio na extraordinária biografia – mandada da Itália, em italiano – de Saul Steinberg:

‘Em 1950, aos 50 anos, Vladimir Nabokov não tinha um só dente, usava dentadura superior e inferior, sofria de várias formas de doenças urinárias, pulmonares, cardíacas. Sofria também de lumbago, psoríase, tinha fraturas de ossos’. Pergunto eu: como, cinco anos depois, aos 55 anos, Nabokov ainda teve tesão pra escrever Lolita?"

Pois bem, no dia em que publiquei a nota, estava eu botando meus livros fora – não acredito em colecionar livros. Guardo alguns clássicos, alguns sempre legíveis, como Proust, alguns que nunca conseguirei ler até o fim, como Joyce, centenas de livros de referência, referências que nunca irão ao Google, o resto – via! Quer dizer, de vez em quando encontro maravilhas que nem sabia que tinha ou livros normais que não sabia possuir. Desta vez encontrei PniN, um livro de Nabokov. Escrito quando tinha 53 anos. Coincidência encontrar um livro de Nabokov, autor que tinha desaparecido da minha memória, no exato momento em que lia em Steinberg a sua precária situação de saúde, sobretudo a bucal. Mas a coincidência maior foi ter resolvido ler o livro. E saber que PniN, o personagem central do livro, era um alter ego do próprio Nabokov. Pois o personagem sofria da mesma precariedade bucal do autor. Leiam:

"Duas horas depois lá ia PniN, capengando de volta, apoiado na bengala, não olhando pra nada. Um fluxo de dor quente ia substituindo gradualmente, em sua boca semimorta, abominavelmente martirizada, o gelado da anestesia. Depois disso, durante alguns dias, ele permaneceu de luto velando aquela parte íntima de seu corpo. Estava surpreendido o quanto gostava de seus dentes. Sua língua lisa e macia costumava escorregar e saltar alegremente entre as rochas familiares, checando os contornos e reentrâncias de um reino fragmentado, mas ainda seguro, penetrando de caverna em caverna, evitando um buraco, perscrutando uma gruta, descobrindo um fragmento de alga doce numa velha fenda. Mas agora nenhum tropeço, não restava qualquer marca. Tudo que existia para a língua era uma enorme ferida escura, uma terra incógnita de gengivas, que medo e desgosto proibiam de investigar. As chapas introduzidas na boca eram como partes de um pobre crânio fóssil adaptado às mandíbulas arreganhadas de um animal estranho".