sábado, janeiro 31, 2009

MILLÔR

A VELHICE REABILITADA (?)

A infância não, a infância dura pouco. A juventude não, a juventude também é passageira. A velhice, sim. Quando um cara fica velho é pro resto da vida. E cada dia fica mais velho.

Neste momento em que, afinal, aparecem algumas mulheres defendendo a preservação das rugas, repudiando botóquicis e cirurgias redeformantes, repito a minha posição desde os 20 anos de idade, quando comecei a envelhecer. Defendi isso, entre outros lugares, no álbum do fotógrafo gaúcho Robinson ACHUTTI e no roteiro de Últimos Diálogos, que escrevi para, e com a supervisão de, Walter SALLES


No álbum de ACHUTTI
Mas olho, com ternura e profunda identificação, essa cara. E ela me olha, essa cara, não com a cara que tem quando anda pelas ruas, mas com a cara que a sensibilidade – do dedo, do olho, do psíquico? – do fotógrafo fixou. Com um pouco da crueldade de Lucien Freud no ato de apunhalar personalidades, muito do sentimento de Cartier‑Bresson diante do trabalho de Munkacsi: "Me mostrou que o instante é a eternidade".

Mas sinto também, nessa foto, condolência e admira-ção, uma percepção reserva-da a muito poucos, a revelação do negativo da beleza. Olho nesses olhos que são os meus, e é como se eles me dissessem: "Qualquer idiota pode ser jovem. Em poucos anos se consegue isso. Mas caras jovens são fotograficamente aflitivas. Não têm biografia. Chapas sem emulsão. Lisas. Pois é preciso muito tempo para envelhecer. E muito talento. O su-premo talento da sobrevivência".


Do roteiro de ÚLTIMOS DIÁLOGOS
GONZAGA – Fui descobrindo uma forma de viver dentro e fora do viver normal. Descobri o Não. Que não precisava gostar de gato nem de cachorro (pega Cátia no colo), embora goste muito de Cátia, nem de celtas, escandinavos, políticos, gringos, negros e mulatos. Nem de mulatas, por falar nisso.

Eu gostava, muito, meu orgasmo era observar a servidão das pessoas à ditadura do gostar. Por que gostar? O que é gostar? Eu detestava – detesto! – classes. Gregos, troianos, assírios, sergipanos, grã-finos, militares, acadêmicos e, mais que tudo, intelectuais. E não falo de falsos intelectuais. Falo dos de verdade. Inteligentes, finos, perspicazes, criativos. Falo dos mais admiráveis – que saco! São os piores. Quando não têm drama eles arranjam, os dramas antigos eles conservam, relembram sempre, os que existem, ampliam, esmiúçam.

A humanidade é muito mais feliz do que os intelectuais descrevem. A tragédia é apenas um ou outro momento da história, em um ou outro pedaço da geografia. Num instante menor de uma vida humana. Tem gente que nasce, vive 70 anos e morre sem o gozo e a glória de um instante dramático.

MARÍLIA – Morre feliz?

GONZAGA – Por aí. Só não consegui me libertar de gostar... dos velhos. Não consegui me livrar dos velhos. (Aponta, num canto, um pôster de Bertrand Russell.) Aos poucos, com o passar dos anos, eles vieram vindo. Começaram a me atrair, me atraem, estão em mim mesmo. Agora, coisa que não acontecia antes, gosto de mim. (CLOSE. Olha fixo na câmera, um tempo, como se estivesse se olhando num espelho.) Jamais me passaria dizer como aquele escritor, medíocre, aliás, esqueci o nome, que escreveu aquele romance... Esqueci também. (Bate na testa.) Como é mesmo o nome dele?

MARÍLIA – Com esses dados é impossível saber.

GONZAGA – Somerset Maugham! Aos 90 anos disse: "Tenho horror de olhar no espelho essa minha cara chinesa". O coitado não aprendeu nada. Qualquer idiota consegue ser jovem. É preciso muito talento pra envelhecer. Tudo que viveram está escrito nas sombras e desvãos das velhas fisionomias. Pessoas de 70, 80 anos, são epopeias fisionômicas. Caras jovens são aflitivas. Lisas. Não guardam nada. Que saco Henry Fonda moço, John Wayne moço, como a gente vê agora a toda hora na televisão, mostrando a sua fugidia juventude. Eu me amo, agora. (Absolutamente frio.) E eu te amo agora, mais do que naquele momento em que, vendo você partir, descobri isso.

"Não achávamos que houvesse hipocrisia em praticar nossas excentricidades num silêncio decente."
Somerset Maugham, aos 65 anos, defendendo o armário