sexta-feira, dezembro 26, 2008

TRABALHO ESCRAVO EDITORIAL O ESTADO DE S. PAULO


26/12/2008

Reportagem da nossa edição de segunda-feira dava conta de que, em um ano, 4.418 pessoas que se encontravam em condições consideradas, pelas autoridades, de trabalho escravo foram localizadas e, por assim dizer, “libertadas”.

Desde 2005, quando o presidente Lula lançou o primeiro Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, pretendendo eliminar o problema até 2006, nada menos que 32.185 trabalhadores rurais foram encontrados nessas condições, o que levou a 22.700 autuações, num valor de R$ 46,4 milhões em indenizações e multas.

Há de se reconhecer aí um anacronismo inteiramente incompatível com a modernização das relações de trabalho no Brasil e que já levou o País ao extraordinário nível de produtividade alcançado, inclusive no agronegócio.

O escravismo “moderno”, vigente 120 anos depois de decretada a Abolição, é definido pelo artigo 149 do Código Penal e se caracteriza por situações em que a pessoa é submetida a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas, a condições degradantes de atividade ou a restrições, por quaisquer meios, no ir-e-vir em razão de dívida contraída com o empregador. É aí que precisamos ponderar se, nas 741 operações de fiscalização realizadas pelo Ministério do Trabalho, não houve qualquer extrapolação do enquadramento legal e criminalização de simples infrações administrativas, de natureza trabalhista. No meio rural a falta de registro em carteira, por exemplo é sem dúvida uma infração trabalhista - mesmo levando em conta as distâncias e as dificuldades em tirar documentação, o que cabe ao próprio trabalhador -, mas nem sempre tem a ver com trabalho escravo ou análogo ao de escravos.

Outra ponderação a fazer é a respeito de uma certa prevenção contra o setor canavieiro. É certo que 29,5% dos trabalhadores que foram encontrados pelas autoridades naquelas condições de trabalho consideradas análogas à dos escravos estavam em lavouras de cana. Também é certo que um quadro comparativo produzido pela Divisão de Fiscalização e Erradicação do Trabalho Escravo evidencia que cresceu o porcentual de casos nos canaviais, em relação a outras culturas. Em 2003, 11,4% das 5.223 pessoas ditas “resgatadas” estavam em plantações de cana. Em 2005 esse porcentual saltou para 32,7% e em 2007 e 2008, quando se tornaram visíveis os primeiros resultados da política governamental de incentivo ao etanol, os casos ultrapassaram 50% em relação ao quadro geral. Mas, há que se levar em conta que a expansão das lavouras canavieiras nos Estados - e Goiás é um bom exemplo disso - também atraiu um número proporcionalmente maior de operações de fiscalização. Quer dizer, parece que as lavouras canavieiras, na medida em que se tornaram alvos preferenciais dos fiscais, passaram a contribuir com um número maior de casos.

Representantes de entidades ruralistas e das usinas de cana criticam a atuação do Grupo Móvel de Fiscalização, afirmando que este “radicaliza” e “transforma meras falhas trabalhistas em crime”. De outro lado, as autoridades e os especialistas que atuam no combate ao trabalho escravo reclamam porque está parada na Câmara dos Deputados, desde 2004, a Proposta de Emenda Constitucional (chamada PEC do Trabalho Escravo), apresentada em 1999 pelo então senador Ademir Andrade (PSB-PA), que altera o artigo 243 da Constituição, prevendo o confisco de propriedades, sem direito à indenização, em casos de exploração de mão-de-obra escrava. Em agosto de 2004, 326 deputados aprovaram essa PEC em primeiro turno, mas a questão ficou nisso. Infere-se daí que a situação do trabalho escravo no Brasil exige uma punibilidade mais rigorosa e uma definição mais precisa, que ainda não encontram respaldo nas leis.

A questão é polêmica, sem dúvida, e há que se considerar também as dificuldades de fiscalização das propriedades rurais espalhadas pelo imenso território nacional. Mas não é possível aceitar que, de qualquer modo, uma situação de vil exploração da mão-de-obra rural perdure - tanto pela imagem que o Brasil pretende fazer respeitar no exterior quanto pela que temos que ter de nós mesmos.