domingo, dezembro 28, 2008

Cores de um retrato em preto-e-branco Gaudêncio Torquato

A pergunta é apropriada para fechar o ano: quantos centímetros o Brasil cresceu em 2008? Pela resposta do presidente Lula, que traz à mão o metro econômico, o País saiu do tamanho da adolescência para a altura da maturidade. Bons centímetros de diferença. A se ouvir o palmômetro social, que capta as vozes das ruas, é provável que a medição presidencial seja confirmada e, mais que isso, considerada modesta. Quando a aferição escapa das latitudes que normalmente levam em conta o tamanho de estômagos para captar impressões de cabeças esclarecidas - que habitam o planeta elevado da formação de opinião -, a imagem que se tem pela frente é a do ditado: plus ça change, plus c''est la même chose (quanto mais as coisas mudam, mais elas permanecem as mesmas). O Brasil, segundo a turma de olhar arguto, pode até ter avançado, mas continua dando dois passos, um para a frente, outro para trás. Emerge a sensação de mesmice. A imagem de eterno retorno. As reformas política e tributária não saíram do papel. Tensões entre os Poderes se acentuaram, denotando descompasso. O verbo fluiu intenso nos palcos institucionais - com a novidade de que a expressão judiciária subiu à tribuna política -, enquanto as verbas, fartas, forraram o colchão das margens sociais.

As visões sobre a trajetória do País passam pelo caleidoscópio dos estratos populacionais. A base da pirâmide ganhou força. A distribuição de renda, por meio de programas de cunho assistencialista e políticas de acesso ao pequeno crédito, puxou milhões de brasileiros do andar de baixo para o território da classe C, tornando-a o primeiro contingente populacional. O fenômeno merece realce pelo impacto que gera no consumo, nos costumes e na fidelização de correntes à figura do presidente. A política econômica segurou a boa performance do País, até a chegada das primeiras ondas da crise financeira internacional. Viu-se um braço forte do Banco Central segurando os juros altos e o câmbio. Sob uma parolagem que pecou pelo excesso e por visível desprezo ao ambiente macroeconômico aberto por antecessores, a cúpula governamental acentuou o caráter do Brasil como Nação emergente. O País, na verdade, tem expandido sua posição no contexto mundial em face das dificuldades que atravancaram economias contemporâneas. O retrato nacional ganhou relevo em função de sua moldura: robustez do parque fabril e tecnológico, força do agronegócio, modernização do setor de serviços, solidez do sistema financeiro e espírito empreendedor, simbolizado por criativos empresários.

O discurso político deu o tom de parte do ano. A eleição de 5.663 prefeitos e 51 mil vereadores banhou-se de racionalidade. Nesse sentido, a taxa de avanços cresceu. O estatuto da reeleição ajudou candidatos a continuar no cargo. Mas o eleitorado conferiu o passaporte de continuidade aos melhores e mais eficientes administradores, que têm sido obrigados a governar com o olho na responsabilidade fiscal. No sentido da fiscalização e da transparência da coisa pública, é fato que o País avançou, até porque as lupas do Ministério Público e da mídia contribuíram para atenuar os desvios e ajustar as condutas dos gestores públicos à régua da moral. Na esfera da pesca de corruptos, 2008 escancarou a polêmica sobre os papéis de agentes do Judiciário, do Ministério Público, da Polícia Federal (PF) e dos órgãos de inteligência. A intersecção de áreas e a invasão de competências funcionais - e pirotecnia em torno de operações da PF - deixaram abertas muitas feridas. O diagnóstico pode ser este do professor Samuel P. Huntington: "Uma sociedade com instituições políticas débeis não tem capacidade para dominar os excessos de desejos pessoais e paroquiais."

A feição da barbárie deixa marcas profundas. Os assassinatos da menina Isabella e da garota Eloá abalaram o País. A radiografia da violência mostra que, nesse território, o País não avançou. Os aparatos policiais ganharam mais corpo. A quantidade de penitenciárias aumentou. Mas, ao decréscimo de estatísticas em certos nichos, contrapõe-se a expansão de outros tipos e modalidades de crime. O Brasil é, hoje, uma paisagem essencialmente urbana. A complexidade social, a briga pela sobrevivência, a derrocada de valores e princípios, enfim, a imbricada trama das metrópoles, com suas expectativas e traumas, desenha cenários de sangue, dor e morte. Um fato, porém, é inquestionável: a mão do Estado começa a pegar bandidos de todos os naipes e "colarinhos brancos" são convidados a visitar o xilindró. Se assim o faz, é porque a sociedade organizada assim o exige. Não se entenda isso como diferencial de governo.

Forte tensão tomou conta dos atores da cena institucional. Os Poderes da República se conflitaram no uso e interpretação das competências. Para alguns, sinal de vitalidade institucional. Não é verdade. O que há é preenchimento de espaços vazios. Um poder quer ocupar o buraco deixado por outro. O Palácio do Planalto abusou de medidas provisórias (MPs), procurando transformar o Legislativo em câmara de eco do Executivo. Para o mandatário, governar sem interferências e pressões de outros é uma dádiva divina. Lula vestiu o traje de imperador. Encheu as gavetas do Congresso com MPs. O Congresso reagiu por meio de seu presidente, que chegou até a devolver a polêmica MP sobre as filantrópicas (algumas com jeito de pilantrópicas). A Câmara, por sua vez, procurou restringir o uso desse tipo de medida. Fez apenas ligeira maquiagem. O Judiciário avançou. Na trilha de decisões históricas (pesquisas com células-tronco, terras indígenas, entre outros temas) e do discurso político.

Ante essa paisagem, retoma-se a questão inicial: quantos centímetros de avanço o País registrou? Difícil de medir. Só mesmo com um bafômetro, inicialmente apresentado como uma revolução de costumes. E que, ao acabar o ano, revela-se uma decepção. Um exemplo de passo para a frente e para trás.