domingo, agosto 31, 2008

DRAUZIO VARELLA Fumantes passivos



Se o Brasil adotasse leis como as dos países desenvolvidos, quanto sofrimento evitaríamos?

FUMAR EM espaços fechados é um atentado à saúde de quem está por perto. Permitir que fumantes dispersem partículas tóxicas no ar que outras pessoas respiram é próprio de países que desprezam a vida humana.
Antes que você, leitor, diga que sou moralista e preconceituoso, apresso-me em confessar que fui dependente de nicotina por 19 malfadados anos, durante os quais fumei em ambientes com mulheres grávidas, crianças e senhoras de idade. Se remorso matasse, não estaria aqui este que vos escreve.
A meu favor, posso alegar apenas a ignorância em que éramos mantidos naquele tempo: não sabíamos quanto o cigarro nos prejudicava nem fazíamos idéia dos malefícios causados a terceiros.
Existiam indícios, é fato, mas os fabricantes investiam fortunas em propaganda para desqualificá-los. Essa gente praticou (e continua praticando) o crime mais repugnante da história do capitalismo.
Nos últimos 20 anos, entretanto, as evidências científicas se tornaram tão contundentes que ficou impossível negar o óbvio: fumantes passivos são pessoas que fumam. Logo, estão sujeitas às mesmas doenças que encurtam a vida dos dependentes de nicotina.
Acaba de ser publicado no "The New England Journal of Medicine", a revista médica de maior circulação, um estudo escocês que ilustra o impacto da proibição do cigarro em ambientes fechados.
Em 2005, foi decretado na Escócia o "The Smoking, Health and Social Care Act" (ato para cuidar da saúde de fumantes), que baniu o cigarro de todos os espaços públicos e locais de trabalho, a partir de março de 2006.
Dez meses antes de a lei entrar em vigor, pesquisadores da Universidade de Glasgow passaram a coletar dados sobre o número de pessoas internadas com doença coronária aguda, em nove hospitais, responsáveis pelo atendimento de 63% dos casos existentes no país. Os resultados foram comparados com aqueles obtidos nos dez meses seguintes ao início da proibição.
Por meio de entrevistas, os pacientes foram divididos em três grupos: fumantes, ex-fumantes e não-fumantes. Para confirmar, todos foram submetidos a um exame para determinar a presença de cotinina (um dos metabólicos da nicotina) na circulação.
Nos dez meses que antecederam a vigência da lei, foram internados 3.235 pacientes com quadros coronarianos agudos. Nos dez meses seguintes à proibição, esse número caiu para 2.684. Ou seja, 551 casos a menos; redução de 17%.
Houve queda em todos os grupos: 14% nos fumantes, 19% nos ex-fumantes e 21% nos não-fumantes, a diminuição mais acentuada.
Os autores compararam esses dados com aqueles obtidos na Inglaterra, antes da lei que introduziu proibição semelhante, 17 meses mais tarde (julho de 2007).
No mesmo período em que os escoceses experimentaram os 17% de redução nas internações por doença coronariana aguda, na Inglaterra a queda foi de somente 4%.
Duas semanas depois da vigência da lei, o número de fumantes passivos nos bares escoceses caiu 86%. As concentrações de cotinina na população adulta do país diminuíram 42%, resultado próximo dos 47% obtidos em Nova York, depois da entrada em vigor de lei semelhante.
Embora o estudo escocês tenha sido o mais completo até hoje publicado, está longe de ser a primeira demonstração dos benefícios da proibição do fumo em espaços comuns.
Em 2004, entre os 68 mil habitantes da cidade norte-americana de Helena, o número de internações por infarto do miocárdio diminuiu 40%. Entre os 148 mil habitantes de Pueblo, no Colorado, a queda foi de 15%. Nos 220 mil de Saskatoon, no Canadá, 13%.
Em Roma, cidade com 2,7 milhões de habitantes, o número de casos caiu 8% naqueles com mais de 65 anos, e 11% na população abaixo dessa idade.
Todos os estudos demonstram que legislações restritivas ao fumo em espaços públicos não só reduzem o número de fumantes passivos como fazem cair os níveis de cotinina no sangue dos próprios fumantes.
Embora por ignorância, má-fé ou ganância exista quem se oponha a elas, não há mais dúvida de que leis desse tipo beneficiam indistintamente crianças e adultos, jovens e velhos, quem fuma e quem não o faz.
Se o Brasil adotasse leis como as dos países norte-americanos e europeus, quanto sofrimento nós evitaríamos?
Até quando faremos parte do grupo de países atrasados, que dá ao dependente de nicotina o direito de jogar a fumaça de seu cigarro para dentro dos pulmões dos outros?

FERREIRA GULLAR

Os fora-da-lei

Afinal de contas, por que punir, se, mais que as algemas, a cadeia humilha o condenado?

TODO MUNDO sabe que não sou jurista nem mesmo advogado, que não entendo de leis, mas isso não me impede de perceber que alguma coisa de estranho se passa com a Justiça no Brasil. Tenho dificuldade para definir precisamente o que é e, menos ainda, o que provoca essa estranheza. Não obstante, ela existe e se traduz na opinião mais ou menos generalizada de que a nossa Justiça não funciona.
Um fator que, sem dúvida, gera a impressão de que não há justiça é a demora com que os casos são julgados. Alguns membros do Judiciário dizem que a causa disso é o grande número de processos que chegam aos tribunais e o número reduzido de juízes para julgá-los, o que deve ser verdade, pelo menos em parte. Outros entendidos na matéria, no entanto, apontam também, como causa da inoperância do Judiciário, a possibilidade quase ilimitada de recursos de que os advogados de defesa podem lançar mão, tentando impedir que os julgamentos cheguem ao fim. Mas não é só: em determinados casos, esses recursos, valendo-se do decurso de prazo, devolvem à liberdade criminosos perigosos que, presos, esperavam julgamento. Aí, então, eles desaparecem e, ainda que se chegue a sua condenação, à revelia, de nada adianta, já que ninguém sabe onde eles se meteram.Lembram o caso do famigerado Elias Maluco que, solto por decurso de prazo, pouco depois assassinava de modo brutal o jornalista Tim Lopes? Esse é apenas um entre dezenas, centenas de casos semelhantes. E quando o cidadão comum toma conhecimento disso, a conclusão a que chega é de que não há justiça neste país. Somos tentados a concordar com ele.
Não é que não haja Justiça propriamente, mas a Justiça penal está longe de cumprir o que se espera dela. E volto à indagação de sempre: qual é a causa disso? Se há algo errado por que não se corrige? Absurdo seria admitir que a Justiça esteja mancomunada com os criminosos ou que perdeu a noção de sua finalidade social.
Vou ver se me explico. Por exemplo, na maioria dos países, quem for condenado por crime hediondo não tem direito ao benefício de progressão da pena, terá que cumpri-la integralmente. No Brasil, não; para surpresa geral, recentemente, o Supremo Tribunal Federal decidiu que esse benefício deve ser estendido a todos os condenados indistintamente. Que significa essa decisão? É que, para o STF, não se deve fazer distinção entre condenados? Mas é a própria lei que os distingue, são os próprios juízes, quando os punem com penas diferentes. É impossível convencer a opinião pública de que um sujeito que assaltou um banco represente, para os cidadãos, a mesma ameaça que alguém que tirou a vida de várias pessoas e, às vezes, com requintes de crueldade. Nem creio que os juízes do STF pensem assim.Então, o que os leva a tomar decisões como essa?
E aí surge o caso das algemas, que levou aquela Corte de Justiça a quase proibir o uso delas. É estranho, uma vez que todas as polícias do mundo algemam presos, desde que ofereçam algum perigo. Exigir, como fez o STF, que o policial peça autorização por escrito para algemar alguém, sob pena de ser punido e o preso, libertado, parece demais. Como antever a reação de um marginal ou uma pessoa qualquer? Outro dia, um preso livrou-se das algemas de plástico, tomou o revólver do policial e o matou. Há quem associe a decisão do STF à "democratização" das algemas, que passaram a ser usadas em banqueiros e empresários. Para não descriminar, quase abolira o uso delas, mesmo sabendo que punha em risco a vida de outras pessoas. O argumento é que as algemas humilham o preso.
Concordo, todo cidadão deve ser respeitado em sua dignidade e também -atrevo-me a acrescentar- na preservação de sua vida. Pergunto: está certo, em nome da dignidade do preso, pôr em risco a vida dos demais? E alguém perguntará: está certo em nome da vida dos demais, humilhar o preso, algemando-o?
São respostas difíceis, num país que quer tanto ser justo, como o nosso. De uma coisa me convenci, porém: a recente decisão do STF oferecerá ao advogado de defesa novas possibilidades de recursos para soltar criminosos e adiar ou até anular as decisões judiciais.Ele deve estar certo, já que sua tarefa é impedir a punição, coisa antiga. Afinal de contas, por que punir, se, mais que as algemas, a cadeia humilha o condenado? Uma nova era se abre diante de nós, quando, enfim, chegaremos à penitenciária virtual.
Enquanto não chegamos lá, vejo que o esforço que fiz para entender nossa Justiça não foi em vão: a lei está certa, e os juízes, também. Nós é que nos sentimos fora da lei.

DANUZA LEÃO

Cuidado com o amor


Quem ama não mata, mas costuma fazer desaparecer a pessoa que conheceu e por quem se apaixonou


O amor é maravilhoso, não é? É, responde a humanidade em coro. Mas por que será que as pessoas mudam de personalidade quando apaixonadas?
Um homem ao lado da mulher que ama é outra pessoa, alguém que nem a própria mãe seria capaz de reconhecer. Ele é capaz de dizer que não acha a menor graça em Angelina Jolie, que quem ama é sempre fiel e que para ele só existem duas coisas que realmente importam: ela -em primeiro lugar- e o time pelo qual torce.
Se você encontrar esse mesmo homem com dois amigos num bar, vai descobrir que se trata de outra pessoa, só pelo som das gargalhadas -que, aliás, serão muitas. Mas quando você chegar, fique certa de que o assunto vai mudar e o assunto vai ficar mais sério.
Quem ama se transforma em uma pessoa diferente, com outros gostos e outras opiniões, pelo menos quando estão juntos. E aquela mulher que quando ouvia os primeiros compassos de uma música animada começava a mexer o corpo e a cantarolar a letra, hoje em dia, quando ouve o primeiro acorde fica surda, perde a memória e nem pensa nas lembranças que a música traz. E ele, que se apaixonou exatamente porque ela mexia não só o corpo mas também o gelo do copo de uísque com o dedo, agora diz "vê se maneira na bebida"; e quando olha para aquela mulher austera, não entende por que a vida já foi tão melhor.
Você já foi à praia com seu namorado, claro. Quando o romance começou, ele brincava e atiçava seus ciúmes com elogios às gostosas que passavam; e você ria, no máximo lhe dava um beliscão leve e amoroso, tão segura estava do seu amor. Agora, se encontrar uma revista de mulher pelada no carro, é capaz de ficar de tromba por uma semana. Você conseguiu transformá-lo num marido, e se transformou numa esposa, e por nada no mundo faria um "strip" para ele, como já fez; certas coisas não são para serem feitas de aliança no dedo.
Tente ir a um restaurante com um casal apaixonado: é praticamente impossível, pois o mundo deles é outro, e nele não há lugar para pessoas normais. Os assuntos são completamente diferentes dos que quando estão sozinhos, e sobretudo as opiniões. Casais costumam votar no mesmo candidato, e poucas mulheres seriam capazes de declarar que vão votar em Gabeira, se o voto dos maridos vai para Crivella. Raras, eu diria.
Vá com seu marido a um show em que as mulheres aparecem com os seios de fora. Nervoso ele vai ficar -todos ficam-, mas depois do primeiro momento (e do seu primeiro olhar para ele), lembrará que você virou "a patroa" e vai ficar com cara de quem está olhando uma paisagem. Mas faça uma experiência e proponha irem a uma praia de nudistas: um homem das cavernas vai surgir de dentro daquele que te encantava quando passava a mão nas suas pernas no carro, no meio do trânsito. Mas quando ela vai almoçar com duas amigas, na segunda caipirinha volta a ser a mulher divertida que era antes, e que não é mais; não quando está com ele.
Onde foi parar esse homem? Onde foi parar aquela mulher que vivia feliz e risonha, que não queria nada da vida a não ser ficar com ele, agarrada, apaixonada? Quem ama não mata -não com uma faca ou com um revólver-, mas costuma fazer desaparecer a pessoa que conheceu e por quem se apaixonou, o que é uma forma de matar. Ou mata a si próprio.

Petropopulismo

Experiência mostra que o "bilhete premiado" do petróleo vira maldição quando recursos fluem para o assistencialismo

TIRAMOS um "bilhete premiado", afirmou o presidente Lula, na última quinta-feira, a respeito da descoberta de um novo manancial de petróleo em águas ultraprofundas. Não é por isso, acrescentou, que devemos "nos deslumbrar e sair por aí gastando o que ainda não temos".
A frase presidencial reflete um espírito de prudência que tem sido raro nos círculos oficiais, a começar do próprio Lula. Ainda assim, não é esclarecedora quanto ao modo com que "gastaremos" os recursos, quando eles finalmente estiverem à disposição -a produção nas novas jazidas, dizem os especialistas, só começará a ser relevante para o país por volta de 2014.
O evento de quinta-feira passada, voltado a uma platéia de empresários, acadêmicos e políticos, destinava-se a divulgar o ambicioso plano de investimentos do BNDES para os próximos quatro anos.
Nesse ambiente, Lula temperou arroubos retóricos com a correta disposição de encarar com "cautela" a descoberta do recurso energético abaixo da camada de sal. Insistiu, por exemplo, na importância de que o país não se transforme em mero exportador de óleo bruto, investindo na produção de derivados.
Não tem sido essa, contudo, a tônica dos discursos presidenciais em ocasiões mais festivas. Predomina a propaganda de que a descoberta petrolífera cairá como um maná redentor sobre a população brasileira -uma dádiva capaz de corrigir com rapidez a desigualdade social e a péssima qualidade do ensino público.
A preocupação em destinar os novos recursos para desenvolver o país e sua população pode parecer consensual. Sob a camada de obviedade, entretanto, é que se depositam os aspectos mais complexos da questão.
Após o retumbante sucesso eleitoral do Bolsa Família -que continua a render frutos aos candidatos a prefeito associados ao presidente no Nordeste-, difundiu-se nos meios políticos brasileiros a idéia de que transferir renda diretamente aos mais pobres é a política social "par excellence". Nada mais perigoso do que aplicar esse princípio, de resto cômodo, às receitas oriundas do petróleo -no caso, obviamente, de o Brasil tornar-se grande exportador.
Na Venezuela, que optou pelo petroassistencialismo, a população se acostumou a esperar do governo inchado e da estatal petrolífera compensações pecuniárias, alimentares e empreguistas. É restrita, naquele país, a capacidade de geração de postos de trabalho e de renda fora da indústria do petróleo -fora do Estado, portanto. Se o modelo permanecer, quando o petróleo acabar, no futuro, os venezuelanos estarão entregues à própria sorte.
A nação sul-americana é apenas um entre vários exemplos de países que não conseguem explorar sua extraordinária riqueza natural de forma a assegurar a prosperidade das gerações futuras. O "bilhete premiado", como às vezes acontece com pessoas despreparadas que de repente recebem uma fortuna, pode esconder uma maldição.

Demétrio Magnoli,Fragmentos de socialismo

Cuba - A crítica não está só nos novos blogs, mas nas ruas; em Cuba diz-se que há os ‘comuns’, sem privilégios, e os ‘hijos de papá’, ligados ao partido

Demétrio Magnoli*

Do topo dos 33 andares do edifício Focsa, o mais alto da cidade, que serviu nos anos gloriosos de residência de trânsito para os soviéticos, sob o jato de um sol aplastante, a paisagem desvenda os quatro tempos de Havana. A leste, além das antigas fachadas imponentes do Malecón, estende-se Havana Velha, o núcleo colonial, circundado pela baía em meia lua e vigiado pelas fortalezas espanholas. Ao redor, bem abaixo, divisa-se o plano ortogonal do Vedado, o bairro de mansões ocupado desde meados do século 19 por uma elite que se separava fisicamente dos pobres. A oeste, espraia-se Miramar, o “novo Vedado” da década de 20 do século passado, cujas mansões abrigam agora as embaixadas e os hotéis de praia. Entre o núcleo colonial e o Vedado, a partir do grande bulevar do Prado, está incrustada Havana Central, a larga seqüência de quarteirões erguidos no início do século 19. De longe, é como se essa faixa intermediária da cidade tivesse sido extensamente bombardeada. Nas suas habitações arruinadas, vivem quase todos os “cubanos comuns” de Havana que escaparam de uma transferência compulsória para os conjuntos habitacionais dos arcos periféricos.

“Cubanos comuns”, ou “cubanos a pé”, são expressões que se ouvem vezes sem conta nas ruas de Havana. É assim que as pessoas destituídas de privilégios descrevem a si próprias. Os demais são os “hijos de papá”, uma categoria que abrange todos os que, em virtude de relações especiais próximas ou distantes com o partido único, têm acesso regular e legal ao CUC. Peso cubano convertible, CUC, é o pote de ouro no fim do arco-íris. A caça ao CUC converteu-se no esporte nacional cubano. Tê-los significa um pouco de cidadania, expressa sob as formas de sabonete, desodorante, perfume, tênis, carne de vaca, gasolina, um celular “pai-de-santo”, a oportunidade fugaz de navegar na internet. Não tê-los significa vegetar no limbo do peso cubano, a moeda oficial regular, que é a moeda de mentira.

Juan e Clara, como os batizo agora, abordaram-me numa rua da zona limítrofe entre Havana Velha e Havana Central. Conversamos, caminhando rápido, transgredindo a regra que proíbe “cubanos comuns” de interagir com estrangeiros. Minutos depois, dois rapazes de azul, policiais adolescentes com salários bem superiores aos de médicos, restabeleceram a ordem. O casal de cubanos teve que apresentar documentos e Juan foi convidado a acompanhá-los à delegacia próxima. Fui junto, apresentei-me como um amigo de anos, inscreveram nossos nomes num livro velho de ocorrências. Democracias administram as coisas. Ditaduras totalitárias só administram os espíritos. Havana Central verga sob a sujeira e um odor entranhado de urina.

Solís é professora primária e dá aulas particulares - ilegalmente. É essa sua forma de acesso precário ao CUC. O CUC vale cerca de 20% mais que o dólar e funciona como ponte entre Cuba e a economia internacional. A presença da moeda almejada aumenta com o crescimento do turismo e das remessas de cubano-americanos para seus familiares na ilha. Um CUC vale 24 pesos cubanos, a moeda interna, desprezada. Um professor primário ganha algo em torno de 15 CUCs mensais. Um médico, cerca de 20. Tudo que ultrapassa o limite estrito da sobrevivência é vendido apenas em pesos convertibles. Na África do Sul da minoria branca, o sistema do apartheid separava as pessoas segundo a “raça”. Na Cuba do desmantelamento do socialismo real, estabeleceu-se um apartheid monetário.

A palavra apartheid chegou às ruas de Havana. Talvez tenha sido difundida pelos corajosos blogueiros que desenham pátios virtuais de debates num país acostumado há meio século a ouvir apenas as vozes de Fidel Castro e seus bonecos de ventríloquo do partido comunista. O portal desdecuba.com abriga a revista web Contodos e uma série de blogs pessoais, dos editores da revista, que residem na ilha e se apresentam com seus nomes próprios. Entre eles, a blogueira célebre é Yoani Sánchez, que ganhou o prêmio espanhol Ortega y Gasset de jornalismo digital mas foi impedida de viajar para recebê-lo.

Fidel Castro, pela primeira vez na história, referiu-se a um dissidente ao acusar Yoani, no prefácio de um livro, de “jogar água no moinho do imperialismo”. Uma resposta desmoralizante saiu no blog do jornalista Reinaldo Escobar, da equipe da Contodos. Ele escreveu: “A responsabilidade que implica receber um prêmio nunca será comparável à de outorgá-lo e Yoani, ao menos, nunca colocou uma condecoração no peito de nenhum corrupto, traidor, ditador ou assassino”. E concluiu: “Faço esse esclarecimento porque recordo perfeitamente que foi o autor dessas reprimendas quem colocou (ou mandou colocar) a Ordem de José Martí nas mais nefastas e imerecedoras figuras possíveis: Leonid Ilich Brejnev, Nicolae Ceausescu, Todor Jukov, Gustav Husak, Janos Kadar, Mengistu Haile Mariam, Robert Mugabe, Heng Samrin, Erich Honecker e outros que esqueci”.

A crítica não está apenas nos novos blogs, mas nas ruas, nas conversas cotidianas, e naquilo que dizem os cubanos que, por força da função, estão autorizados a falar com estrangeiros. A reforma da previdência, anunciada numa primeira página de uma edição de julho do Granma, o jornal do partido único, elevará a idade de aposentadoria. Na justificativa oficial, Cuba acompanha as tendências mundiais, que decorrem da dinâmica de envelhecimento da população. “Passamos décadas dizendo que não reproduziríamos as reformas previdenciárias dos outros países. Agora, fazemos exatamente isso. É como tudo mais: perdemos meio século falando mal dos outros e ficamos para trás. Aqui não se produz nada, só se fala.” O motorista de táxi, que batizo Pérez, opera nos circuitos de hotéis e tem algum acesso ao CUC. Não é, nem de longe, um dissidente. Mas ele aponta os campos abandonados do interior, onde se cultivava cana antes do colapso da indústria açucareira cubana, e ironiza a “reforma agrária” anunciada junto com as mudanças na previdência. “As pessoas se mudaram para as cidades. Raúl Castro imagina que alguém voltará para o campo para cultivar as terras ociosas, onde não há nem luz elétrica?”

“Cuba é o país da propina.” A definição, do guia Rodolfo, outro nome fictício, não tem nenhuma intenção crítica. Rodolfo conduz passeios de jet-ski na laguna de Varadero e tudo que quer é a gorjeta do grupo de turistas ao final do passeio, na hora em que, literalmente, ele passa o boné. A “propina” é a renda verdadeira, em pesos convertibles, de todos os que trabalham num setor turístico em plena expansão. Engenheiros, historiadores, enfermeiras, psicólogas, professores - todos que podem trocam suas profissões por um lugar qualquer, de motorista, guia ou camareira, no almejado setor turístico. Mas não basta querer: é preciso ter contatos. A conquista de um emprego na esfera do CUC depende de indicações políticas diretas ou indiretas, não de qualificações. O preço real de todos os serviços nessa esfera abrange a onipresente e quase inevitável propina.

Os cubanos ganham a vida depois do trabalho ou nos interstícios do trabalho. É a hora da propina, do bico ilegal em pesos convertibles, do desvio de charutos para o mercado clandestino das ruas. O trabalho não tem valor. Estudar não alarga horizontes. São essas as lições ensinadas todos os dias pela economia política da crise do socialismo.

Rodolfo, como tantos guias, ecoa ritualmente, por costume e inércia, fragmentos de uma cínica propaganda oficial. “Vocês não verão crianças descalças em Cuba.” Não as há, de fato, mas o subsídio governamental ao calçado infantil acabou para sempre há 18 anos. As crianças não andam descalças pois seus pais gastam o que não têm para calçá-las. Tênis e sapatos custam parcela maior dos salários do “cubano comum” que de um brasileiro pobre. “Aqui em Cuba, a escola é obrigatória. Nenhum pai pode deixar seu filho fora da escola.” No Brasil é igual, retruco, para espanto genuíno de Rodolfo, que “aprendeu” na cartilha midiática do regime que fora de Cuba imperam o analfabetismo, a miséria e a fome. “Todos têm acesso a hospitais e médicos gratuitos em Cuba.” Depois da declamação habitual, vêm os detalhes. Os serviços de excelência não são para “cubanos comuns”, mas para estrangeiros e para os círculos da burocracia comunista. A saúde popular cubana é um SUS em miniatura, com sua litania de equipamentos obsoletos, carência de leitos e filas intermináveis para consultas e operações. O agravante recente é a carência de médicos, que saem em missões de política externa na Venezuela e na Nicarágua. “Mas não podemos reclamar, pois é tudo de graça...” No Brasil, reclamamos.

Num país que criminaliza o intercâmbio de informação, proliferam os mitos conspiratórios. Camilo Cienfuegos, camarada de Fidel na Sierra Maestra, morreu num misterioso acidente aéreo em outubro de 1959, quando retornava de Camaguey, onde cumpriu a dolorosa missão de prender seu amigo revolucionário Hubert Matos, o comandante rebelde acusado de traição. Os destroços do avião jamais foram encontrados. A versão de que Fidel tramou a morte de Camilo, apenas uma hipótese histórica, circula como verdade indiscutível entre os “cubanos comuns”. Camilo é como quer ser chamado um estudante da Universidade de Havana que me convidou a pagar-lhe um “trago do Che” e, prudentemente, indicou o caminho do bar caminhando meia quadra à frente. Diante da curiosa mistura de cuba libre, mel e hortelã que serviria para amenizar a asma, ele identificou no episódio o início da degeneração dos castristas. “Aqui, todos trabalhamos compulsoriamente para Fidel.”

Nem tudo é ingenuidade. Encontra-se, entre os “cubanos comuns’, uma intuição política aguçada, que se manifesta especialmente quando se abordam as relações com os EUA. O bloqueio econômico americano funciona como álibi ideal para a ditadura dos Castros, explicam-me em encontros separados Camilo, Juan e Clara. O levantamento do bloqueio cancelaria o núcleo da argumentação governamental. Barack Obama fará isso? - indaga-me Camilo.

Internet, em Cuba, só em hotéis e lan houses. Uma hora custa seis CUCs. A imensa maioria dos cubanos nunca navegou na rede e poucos sabem da existência dos blogueiros independentes. Todos sabem da história de Guillermo Rigondeaux e Erislandy Lara, narrada de acordo com a versão do regime, pelo Granma, junto com uma profusão de elogios ao governo brasileiro, que os capturou e deportou. “Lula é amigo de Fidel”, explicam os “cubanos comuns”, que continuam a enxergar os boxeadores como heróis nacionais e não escondem o desprezo pelo ato de covardia de Tarso Genro e Lula. O que eles não sabem, pois o Granma não informou, é que Lara fugiu de Cuba há semanas, numa lancha rápida contratada por promotores esportivos alemães.

Sair de Cuba pode ser uma aventura mesmo para turistas. Há um novo golpe na praça, aplicado pelos oficiais de imigração, preferencialmente contra idosos, no aeroporto José Martí. Um funcionário que verifica documentos subtrai o visto de entrada. O funcionário seguinte requisita o visto, constata o seu “extravio” e anuncia que, nessas condições, “é impossível sair de Cuba”. Seguem-se visitas estéreis a oficiais fardados e sugestões para que a vítima “procure melhor” o papelucho amarelo na carteira, onde repousa um tesouro em euros ou dólares. A tensão é mantida até depois da última chamada para embarque. Se o turista não entender a mensagem, o visto sumido acaba reaparecendo. Ninguém quer provocar incidentes diplomáticos. Cuba é só o país da “propina”.

*Demétrio Magnoli, sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP, é autor de História da Paz (Contexto) e Terror Global (Publifolha)

A força da gente Miriam Leitão

Há um inimigo oculto atuando contra a Rússia neste momento e tornando ainda mais insensato o caminho bélico da dupla Putin-Medvedev. A demografia não recomendaria a eles que iniciem guerras colocando em risco os jovens. A população russa encolheu em sete milhões na década entre 1997 e 2006. As projeções indicam que o declínio vai continuar, e eles encolherão mais 13 milhões até 2025.

Hoje os russos são 141 milhões em ação; 3 milhões a menos que em 2002. Em 2025, serão 128 milhões. Há algum tempo, o país entrou num forte declínio da taxa de natalidade, a qual ficou abaixo da reposição. Isso a levará a perder as pessoas em idade produtiva e ter um aumento dos idosos. Até 2025, as projeções indicam que a população de 15 a 64 anos vai diminuir em 16%.

Os russos com 65 anos ou mais vão aumentar em 18%.

A idade mediana no país já é perto de 40 anos. Uma sociedade assim, com velhos aumentando e a população ativa diminuindo, enfrenta riscos e dúvidas. Esta deveria ser a hora de o governo poupar os recursos do petróleo e preparar o futuro, em vez de alimentar expansionismos geopolíticos da Guerra Fria. O governo tem feito campanhas a favor da natalidade, e está subsidiando o terceiro filho; mesmo assim, essas políticas não têm tido muito efeito.

Má hora para abrir várias frentes simultâneas de conflito com o Ocidente. Por gestos e palavras, a dupla do barulho que ocupa o Kremlin pode reagir contra outros governos pró-americanos da região, como a Ucrânia, por exemplo. Putin e Medvedev fizeram declarações fortes contra os mísseis americanos na Polônia. Imagine se acabam se envolvendo em conflito em todas essas frentes? Demograficamente falando, não deveriam.

Se for olhado apenas por esses dados — retirados do US Census Bureau —, que raramente entram na conta dos economistas, o Brasil está na melhor situação dos BRICs. A população chinesa e indiana é gigantesca, e vai permanecer crescendo até atingir, cada um, perto de 1,5 bilhão de pessoas, em 2025. O Brasil tem uma população de tamanho razoável. Com as taxas de fecundidade caindo aqui mais que o esperado, os dados estão sendo revistos.

Na sexta-feira, o IBGE informou que cálculos novos indicaram que o país continuará crescendo até 2040, quando chegaremos a 220 milhões de habitantes; depois a população começa a cair.

Até 2025, segundo os últimos dados detalhados do IBGE, o país vai diminuir um pouco a população de 0 a 14 anos, dobrará o número de idosos, mas vai continuar ampliando o grupo em idade produtiva — de 15 a 64 anos —, que aumentará 21%. A China ficará com essa faixa da população praticamente estagnada, e vai quase dobrar o numero de idosos, o que significa o ingresso de aproximadamente 100 milhões de pessoas a mais nessa faixa de idade. Para eles — e para nós também — é fundamental ter um sistema de previdência que funcione e incentive as pessoas a poupar para que o peso não recaia quase inteiramente sobre o Estado.

A Índia tem a população mais jovem dos quatro e continua crescendo de forma mais acelerada. Acrescentará, até 2025, uma multidão de 320 milhões à sua população.

Ela tem um indicador que é olhado como ativo — o aumento da população em idade produtiva será o maior dos quatro BRICs, de 31%.

Por outro lado, isso é um enorme desafio, dado o tamanho monstruoso de sua população, dada a dimensão do número de excluídos. Esse crescimento exigirá muito da economia. Um estudo publicado no site do FMI calcula que a Índia tem que criar 13 milhões de empregos por ano pelos próximos 40 anos.

O país ainda tem atrasos na educação que fazem o Brasil até parecer bem-sucedido nesta área, como, por exemplo, quase 50% de taxa de analfabetismo entre as mulheres.

A educação das mulheres tem um reflexo direto na taxa de natalidade e, mais importante, na educação dos filhos. É impossível se modernizar apenas investindo numa elite supereducada, deixando metade das mulheres na ignorância, como faz a Índia. A China, apesar de todo o enriquecimento recente, tem também muitos excluídos.

Pelos grandes números da China e da Índia, pelo encolhimento e envelhecimento rápido da Rússia, pela nossa relativa juventude e tamanho equilibrado da população, o Brasil é o que tem o melhor quadro demográfico.

Mas que nos apressemos.

Nossa chance de dar o salto é nos próximos 20 anos; e o custo da previdência é alto demais para uma população tão jovem.

Quando se compara o Brasil com a Índia, a China e a Rússia, elas parecem mais perto do perfil de potência.

Principalmente os dois últimos países. A Rússia renascendo pela força do petróleo, depois do colapso de dez anos atrás; a China com seu crescimento acelerado.

Mas os três estão em áreas conflagradas. A Índia é vizinha do Paquistão, com quem tem disputas territoriais antigas. Ambos têm bomba atômica, e o Paquistão virou o que a imprensa americana chama de “país mais perigoso do mundo”.

Lá se refugiaram os talibãs e a al Qaeda. A Rússia reabriu a temporada de instabilidade e encomendou o que pode ser uma seqüência de episódios de conflitos. A China tem conflitos internos reprimidos pela ditadura e também pretensões expansionistas. Perto deles, o Brasil parece viver numa região pacífica. Aqui, a ameaça de guerra entre Venezuela e Colômbia durou 12 horas. Os demais BRICs têm mais o perfil de potência pelo poderio bélico e atômico. Mas sabe qual a diferença? O Brasil não tem esse tipo de pretensão sobre território alheio. Aqui o que faz falta não é o míssil russo, o exército chinês, a bomba nuclear indiana. O que nos faz falta mesmo é a educação da Coréia.

O urso não deve ser provocado LUIZ FELIPE LAMPREIA

A Rússia, que é o Estado de maior extensão territorial do planeta, possui imensas reservas de petróleo e gás natural, tem uma população de 142 milhões de habitantes, o 11º PIB com 1,3 trilhão de dólares e o maior arsenal mundial de armas nucleares. É óbvio que não se pode considerá-la como um país declinante ou débil, até por que sua economia cresce há alguns anos a taxas próximas de 8% ao ano.

Ora, foi precisamente o que fez o governo Bush ao estimular o presidente Mikheil Saakashvili a cometer a insensatez de atacar militarmente a Ossétia e a Abcásia, onde a população é majoritariamente russa e não deseja fazer parte da Geórgia. Por que digo isso? Desde o desastre do aprendiz de feiticeiro Gorbatchov — que teve a ilusão de renovar o comunismo quando ele já estava absolutamente falido — que os Estados Unidos procuram levar a Rússia a adotar os paradigmas ocidentais na política e na economia. Não o têm feito com compreensão respeitosa e paciência, mas com pressões e imposições ofendidas ante as resistências russas. Na euforia da vitória sobre a União Soviética , o presidente George Herbert Bush proclamou em 1991 o início de uma nova era de segurança e estabilidade internacionais sob a égide dos Estados Unidos. Nessa concepção, a Rússia desempenharia de início um papel semelhante ao Japão e à Alemanha no pós-guerra: países derrotados pelas armas que ficariam sob a tutela americana até serem gradualmente inseridos no veio central do Ocidente.

Assim fazendo, Washington perdeu a oportunidade histórica de estabelecer com a Rússia uma robusta cooperação estratégica. Como disse Henry Kissinger em recente artigo, “sucessivos governos americanos agiram como se a criação da democracia russa fosse uma tarefa principalmente americana...

Por isso, uma grande maioria dos russos considera os Estados Unidos presunçosos e determinados a minar a recuperação da Rússia”.

Ora, a Rússia precisa do Ocidente para obter mercados, investimentos, tecnologias e referências.

Se algum ensinamento lhe ficou do naufrágio soviético foi de que o isolamento tem como preço o empobrecimento e o atraso.

Mesmo que Putin e agora Medvedev estejam valendo sedo apoio popular maciço que desperta uma reação forte contra provocações externas, não creio que eles ignorem a verdade clara de que a Rússia não ganhará em fechar-se no seu perímetro. O Kremlin sabe que não pode recriar a Cortina de Ferro. Nesse sentido, a incorporação da Hungria, da República Tcheca, da Polônia, da Romênia, da Bulgária e das três repúblicas bálticas à União Européia foi um desenvolvimento muito positivo para estes países, mas a Rússia não considerou que houvesse nisso qualquer desafio ou ameaça.

Embora a secretária de Estado Condoleezza Rice seja Ph.D. em História e especialista em Rússia, o governo Bush vem tendo uma atuação temerária na questão da Geórgia. Estimulou o presidente Saakashvili a subir o tom de confrontação com Moscou, prometeu-lhe garantias que não podia honrar e, na hora do fiasco, limitou-se a mandar aviões com doações humanitárias. É óbvio que estando envolvidas em duas frentes difíceis no Afeganistão e no Iraque, as forças militares americanas não poderiam atuar contra os russos no Cáucaso. É também patente que um governo enfraquecido e terminal não poderia arriscar a eclosão de um enfrentamento com a Rússia em terreno tão desfavorável. Creio que esta é mais uma iniciativa, de muitas, que os ultraconservadores da Casa Branca articularam e que tanto têm contribuído para debilitar o poder e, sobretudo, a credibilidade americana.

Não há de ser com os procedimentos que conduziram a Geórgia ao recente desaire que os Estados Unidos vão estabelecer a democracia ou a independência dos países da esfera de influência russa. O motivo principal de Putin e Medvedev é preservar intacta a influência russa, é mostrar quem é a grande potência na região.

Por isso, quanto mais a Rússia for provocada, mais reagirá com força, como é sua tradição há três séculos.

Enfraquecido e terminal, governo Bush não pode ir ao confronto com a Rússia

O troco republicano Merval Pereira

ST. PAUL, Minnesota. A convenção republicana começa amanhã com as pesquisas já mostrando uma retomada da liderança do candidato democrata, Barack Obama, como é tradição acontecer. A primeira conta a fazer é de que tamanho será a subida do democrata depois de sua convenção. Há dois exemplos célebres no seu partido: o ex-presidente Bill Clinton ganhou 16 pontos percentuais após a convenção em 1992, e Al Gore, em 2000, saiu de uma derrota por sete pontos percentuais para uma vitória de dez pontos sobre George Bush. No primeiro caso, Clinton venceu Bush pai por boa margem e Al Gore foi derrotado por Bush filho no colégio eleitoral numa decisão polêmica, embora tenha vencido no voto popular. São parâmetros que podem servir de base para uma análise do potencial de Barack Obama junto ao eleitorado.

A partir de agora, todos os holofotes estarão voltados para os republicanos, e é a primeira vez em 50 anos que os dois partidos fazem convenções logo em seguida uma da outra. Este detalhe pode fazer com que a dança dos números nas pesquisas eleitorais continue indefinida, com os republicanos neutralizando a dianteira dos democratas após as convenções.

A corrida presidencial está tão apertada que os dois candidatos estão buscando eleitores no campo adversário.

O democrata Barack Obama salientou, em seu discurso, em Denver, o pedido de união entre democratas, republicanos e independentes para dar um basta nos oito anos de gestão Bush.

Já a vice de McCain, a governadora do Alasca, Sarah Palin, investiu diretamente no eleitorado feminino democrata, na expectativa de ganhar votos entre os ainda insatisfeitos com a derrota da senadora Hillary Clinton.

Para o cientista politico Silvério Zebral, ligado ao Partido Republicano, o problema na estratégia do partido é que a identificação construída em favor de McCain é do tipo negativa, feita através da “desconstrução” de Obama, baseada não nos temas de campanha, mas nos atributos negativos e incapacidades do candidato democrata.

É uma estratégia que pode ser vencedora, mas Zebral teme que quanto mais a intenção de voto em McCain basear-se sobre uma rejeição do eleitorado ao “homem” Obama, “maior será o desafio de McCain em emocionar positivamente os indecisos e oferecer-lhe razões ‘positivas’ sobre si próprio para leválos às urnas e atraí-los para o campo conservador”.

Há em política uma verdade estabelecida que esta campanha está desmentindo, por enquanto: é mais importante “de quem se fala” ou “do que se fala”, do que “o que se fala”. “A novidade desta eleição — e o quebra-cabeça que entusiasma os analistas — é que a agenda republicana tem sido o próprio ‘Barack Obama’.

E na batalha de imposição de agendas — ao menos até agora — esta ‘estranha agenda republicana’ — Obama, o incapaz, o inadequado, o duvidoso — vem saindo vitoriosa”, comenta Silvério Zebral.

Outro analista especialista em campanhas eleitorais, o marqueteiro americano Dick Morris, acha que o candidato republicano John McCain tem alguns desafios pela frente, o principal deles o de convencer o eleitorado de que o seu eventual primeiro mandato não será o terceiro de Bush, como Obama colocou no seu discurso de aceitação.

Para tanto, McCain teria que acentuar seu lado republicano liberal, que o fez ficar contra a tortura aos prisioneiros de guerra e, em outros temas, ter se posicionado junto com os democratas como em projetos de lei de reforma do financiamento de campanha, por ética na política e legislação mais flexível para os imigrantes.

O dilema de McCain é semelhante ao de Obama. Ele venceu as prévias republicanas por ser independente e se distanciar da maioria das críticas que são feitas ao governo Bush, com exceção da guerra no Iraque.

Mas, depois de confirmado candidato, aproximou-se da Casa Branca e teve que fazer concessões à ala mais radical do partido, e a escolha da vice Sarah Palin é um exemplo disso. O democrata Barack Obama, por sua vez, teve que se afastar da imagem de outsider de Washington para conseguir o apoio da cúpula partidária, e a escolha do vice Joe Biden é sintoma disso.

Também teve que aceitar a exigência dos governadores democratas para que se ativesse a questões do dia-adia do eleitor médio, em vez de manter a campanha baseada apenas na esperança de mudança.

O segundo desafio que Dick Morris vê diante de McCain é a desconstrução das propostas de Obama de cortar os impostos de 95% das famílias, e estender a todos os americanos um seguro de saúde possível de pagar, além de investir US$ 150 bilhões para tornar o país independente dos países árabes em material de energia.

O próprio Obama admitiu no discurso de Denver que precisará buscar recursos fazendo uma revisão de programas já existentes que sejam ineficientes, para poder cumprir as promessas sem desequilibrar mais ainda as finanças do país.

Uma conseqüência da nova política de impostos de Obama, que penalizaria os mais ricos para poder cortar os impostos da classe média, seria, segundo os conservadores, o desestímulo ao investimento produtivo, impedindo que uma outra promessa, a de aprofundar o conhecimento científico e tecnológico estratégico, seja realizada.

Ontem mesmo já apareceram análises de institutos independentes dizendo que, mesmo cortando programas ineficientes e fechando brechas na legislação que permitem às empresas pagar menos impostos, o programa de corte de impostos de Obama custará US$ 130 bilhões por ano, e o máximo que se conseguirá economizar serão US$ 80 bilhões.

A solas con Néstor Kirchner Por Joaquín Morales Solá

Anticipamos a continuación el prólogo del nuevo libro del autor de esta nota: Los Kirchner. La política de la desmesura (Sudamericana)

Conocí a Néstor Kirchner a mediados de 2002. Quería ser candidato a presidente en las elecciones del año siguiente, pero él estaba seguro de que perdería esa batalla. El entonces presidente, Eduardo Duhalde, prefería como candidatos del peronismo a Carlos Reutemann o a José Manuel de la Sota, que venían de liderar decisivos distritos electorales. Lejos y desahuciado, Kirchner andaba entonces cerca de candidatos como Elisa Carrió, criticando duramente a Duhalde.

Lo cierto es que Reutemann no quiso la candidatura peronista y a De la Sota no le fue bien con las encuestas. Otros dirigentes peronistas no aceptaron los sondeos de Duhalde para ser candidatos presidenciales (Felipe Solá, por ejemplo) y el entonces presidente se quedó ante una opción demasiado feroz para su destino: o apoyaba a Kirchner o tendría que devolverle la Presidencia a Carlos Menem, su eterno enemigo, que también era candidato. Decidió apoyar a Kirchner. Kirchner se reacomodó, rápido, y calló de inmediato sus críticas a Duhalde.

La campaña electoral de 2003 la hicieron juntos. Duhalde le acercó a Kirchner sus propios funcionarios, la estructura del peronismo bonaerense y recursos que ya empezaban a ingresar generosamente al Estado nacional por el aumento del precio de las materias primas en los mercados internacionales.

No obstante, sobre el final de la campaña, los pronósticos no cerraban para Kirchner. Duhalde echó mano entonces a su mejor baraja en esos tiempos: le pidió a su ministro de Economía, Roberto Lavagna, que anunciara su continuidad al frente del equipo económico en un eventual gobierno de Kirchner. Lavagna lo hizo. Néstor Kirchner ganó después la presidencia con módicos votos.

Kirchner desplegó una campaña electoral prometiendo cosas que nunca cumplió. Una vez le pregunté qué haría con los dirigentes de la oposición si llegaba a la presidencia. "Mis reuniones con ellos serán tan habituales, tan comunes que ni figuraran en la tapa de los diarios", me respondió.

Nunca los recibió y, salvo excepciones, tampoco habló por teléfono con ninguno.

Durante la campaña, describió con crudeza y realismo los problemas del transporte público y prometió que negociaría con los empresarios un sistema mejor. El problema lo resolvió luego ?o creyó resolverlo? con un torrente de subsidios a los empresarios.

El transporte público es hoy mucho peor de lo que era cuando llegó Kirchner. Son dos ejemplos que sirven para describir la personalidad y la administración de Néstor Kirchner.

Duhalde, el protector concluyente de su candidatura presidencial, y Lavagna, el garante convincente de ella, fueron despedidos poco después de las cercanías del poder. Es imposible rastrear en la historia un caso parecido al de Kirchner, por lo menos en sus formas tan brutales de construir poder. Premios y castigos.

Con nadie, ni con sus leales ni con sus adversarios, probó nunca la seducción, el eterno arte de los políticos cabales.

Kirchner ha creado muchos mitos. ¿Era un infierno, como él dice, la Argentina que recibió en mayo de 2003? El país creció en ese año al ritmo del 8,2 por ciento anual. Ningún infierno es tan bondadoso. Suele señalar también que debió ser duro, gritón e intimidatorio porque su debilidad de origen (fue el presidente menos votado de la historia) lo colocaba como blanco predilecto de opositores, empresarios y medios periodísticos.

Sin embargo, todos ellos aspiraban a normalizar el destartalado sistema institucional tras la gran crisis de 2001 y 2002. Después se supo que sencillamente Kirchner no sabía ser de otro modo.

En los cuatro años y medio de su gobierno me reuní muchas veces con él. Siempre la iniciativa fue suya; nunca tuve sus teléfonos ni conozco el nombre de sus secretarios o edecanes. Algunos columnistas políticos estamos acostumbrados a hablar con los presidentes. Lo he hecho con todos los presidentes desde 1983. Necesitamos verlos, muy de vez en cuando, para tener una idea lo más cercana posible de sus ideas, de sus reacciones y hasta de sus pasiones.

En la intimidad, Kirchner no desentonaba con los otros presidentes democráticos que había conocido. En el sosiego de un despacho oficial, era muy distinto de ese hombre incendiario y belicoso que aparecía en las tribunas.

Pero era distinto en una cosa. Los otros presidentes contestaban con la verdad o la escondían, pero no la desfiguraban.

Al final, llegué a la conclusión de que Kirchner le habla al oído del que lo escucha. Esto es: decía, y dice, exactamente lo que el interlocutor quiere escuchar o él cree que quiere escuchar. Después, hacía y hace todo lo contrario. Esta fue, por lo menos, mi experiencia.

Mi relación con él, siempre profesional, fue cambiante y contradictoria. Kirchner es uno de esos hombres (y he conocido pocos de esa naturaleza en el ejercicio del periodismo) que es capaz de ofender y luego seguir buscando la conversación como si nada hubiera pasado. El momento más tenso fue cuando me atribuyó públicamente una nota del diario Clarín en los años 70, de supuesta condescendencia con la dictadura militar, que no existe en ninguna hemeroteca. De hecho, yo empecé a escribir las columnas dominicales de Clarín a principio de los años 80. En definitiva, nunca había escrito esa nota y así lo afirmé categóricamente en un duro artículo en el diario La Nacion, en el que señalaba que Kirchner carecía de la sensibilidad necesaria para distinguir entre un gobierno democrático de origen, y el suyo lo era, y un gobierno democrático de ejercicio, condición que estaba perdiendo rápidamente.

Más sorprendente que todo eso fue su reacción cuando comprobó que su propia imputación era falsa. Me invitó a tomar un café en la Casa de Gobierno. No bien me vio me lanzó la siguiente frase: "Me rectifico, pero usted quiere que otro presidente esté en este despacho". Corría el año 2006 y las elecciones presidenciales se realizarían en 2007. "Me está hablando de un problema del próximo año", le respondí, esperando el momento de una disculpa. Nunca hubo disculpas.

Esa anécdota sirve para entrar de lleno en la extraña relación de Kirchner con los medios de comunicación. Ningún otro presidente de la nueva democracia argentina les ha dado tanta importancia a los medios como el ahora ex presidente. Está siempre pendiente de cada línea que escriben los periodistas o de cada voz que emite la radio y la televisión. Un empinado kirchnerista le preguntó una vez a Duhalde qué consejos le daría él a Kirchner. La respuesta de Duhalde pegó en el corazón del modelo de los Kirchner: "Que dejen de leer los diarios y que se dediquen a gobernar", les mandó decir.

La obsesión por los medios y los periodistas es perfectamente compartida por su esposa. Esa obsesión es conspirativa también. Ambos consideran a los periodistas meros escribas al servicio de empresas que siempre defienden intereses inconfesables.

Aun cuando suelen rescatar la coherencia del diario La Nacion, también en este caso están seguros de que sus periodistas escriben según la orden que diariamente reciben de sus directivos. Es una visión provinciana e irreal. Esa mirada es consecuencia también de otra cosa: durante muchos años no hubo para los Kirchner otra supuesta oposición que no fuera el examen crítico del periodismo.

Luego, ya recientemente, le sobrevino la derrota. No la supo administrar, porque francamente nunca había gobernado en la adversidad. Se encerró en un círculo de incondicionales, donde las malas noticias no llegan hasta que estallan, desordenadas e irremediables, en el espacio público.

Ni siquiera supo aprovechar el mejor momento internacional de la economía argentina desde la Segunda Guerra. Postergó decisiones económicas fundamentales en homenaje a las mediciones de opinión pública, pero esas postergaciones le significaron con el tiempo un catastrófico derrumbe en tales encuestas.

Por obra de una extraña casualidad, estuve por última vez con Kirchner el día que se fue del despacho presidencial, horas antes de que ingresara a él su esposa. Yo tenía una cita con un funcionario en la Casa de Gobierno a la misma hora en que el todavía presidente se despedía de sus oficinas y del personal.

Me topé con él. Nos saludamos cordialmente. "Nos seguimos viendo", le propuse yo. "Sí, pero dentro de siete u ocho meses. Debo desaparecer de todos lados para permitirle a Cristina que se instale cómodamente como presidenta", me respondió.

Una semana después estaba, en medio de un espectacular operativo, en la selva colombiana con Hugo Chávez y Oliver Stone para garantizar la liberación de un niño secuestrado por las FARC que no estaba secuestrado.

Ese papelón internacional marcó el inició de un permanente protagonismo público del ex presidente, que convirtió a su esposa en una presidenta débil.

La relación entre el presidente y el periodista terminó como empezó: con palabras escritas en el agua, con aseveraciones y promesas que el jefe del Estado nunca cumplió.

El cambio que quieren los Kirchner Por Mariano Grondona

Barack Obama acaba de lanzar su candidatura a la presidencia de los Estados Unidos con una consigna: "Hay que cambiar ya". El énfasis de Obama en la mágica ilusión del cambio tiene algún sentido porque su triunfo eventual no equivaldría simplemente a la sustitución de los republicanos por los demócratas según la tradicional rotación del bipartidismo norteamericano, sino nada menos que al ingreso en la cima del poder de una nueva generación tan alejada de la dinastía de los Bush, padre e hijo, como de la dinastía de los Clinton, marido y mujer. Joven y carismático, Obama pretende encarnar el poderoso deseo de cambio que hoy experimentan los norteamericanos.

El año pasado, en el transcurso de nuestra propia campaña presidencial, Cristina Kirchner enarboló la mágica palabra que hoy emplea Obama al escoger como lema "El cambio recién empieza". Desde el momento en que Cristina había sido digitada por su marido para sucederlo, la sensación de que con ella algo habría de cambiar era menos evidente que en el caso de Obama. No faltaron, sin embargo, quienes creyeron que, con la nueva presidenta, también vendría no sólo un cambio de estilo, sino también de ministros y de políticas. Esta primera ilusión resultó prontamente frustrada cuando Cristina Kirchner, además de confirmar casi sin cambios el gabinete que heredaba de Néstor Kirchner, insistió en su política internacional chavista, que sigue aislando a la Argentina de las naciones y los capitales de Occidente.

Pero la derrota frente al campo que acompañó los primeros meses de gestión de la nueva presidenta parece haber traído, después de todo, algunos cambios. La Presidenta y su antecesor brindaron por lo pronto sus primeras conferencias de prensa después de cinco años de hermetismo. El hosco Alberto Fernández fue reemplazado por el simpático Sergio Massa a la cabeza del gabinete. En Agricultura, el inocuo Javier de Urquiza fue sustituido por el experto Carlos Cheppi. El confiscatorio aumento de las retenciones a la producción agropecuaria, que fue la piedra del escándalo de la iniciación presidencial de Cristina, fue enviado al Congreso y rechazado por él. Con algunos meses de retraso, ¿se ha iniciado entonces el cambio que la nueva presidenta había prometido en su campaña?

Un cambio "táctico"

No hay duda de que algo está cambiando en el Gobierno desde la derrota frente al campo. Pero este "algo", ¿es estratégico o es táctico ?

El cambio de los Kirchner sería "estratégico" si algo fundamental como el fin que se han propuesto o su propio estilo -es decir, su carácter- se hubiera modificado. ¿Quién se animaría a decir tanto? Si el fin de los Kirchner ha sido desde el comienzo obtener sobre los argentinos un poder total y sin plazos en virtud de reelecciones sucesivas, ¿hay alguna evidencia de que contemplen bajarse del poder en 2011, como le correspondería a cualquier gobernante de espíritu republicano a la manera de Tabaré Vázquez, Lula o Bachelet? ¿Hay algún signo cierto de que, en vez de pretender un pensamiento único en torno al "modelo" ideológico que proclaman, compartan ahora sus diálogos íntimos, hasta ahora secretos, con algún tercero? Al contrario, todo pareciera indicar que los Kirchner, pese a las controversias que han generado en torno de ellos en los últimos meses, con la consabida pérdida de popularidad, siguen iguales a sí mismos.

¿Cómo evaluaremos entonces las pequeñas señales de cambio que, pese a todo, han emitido en los últimos tiempos? Quizá, como cambios "tácticos". Estos aparecen cada vez que un protagonista, sin ceder un ápice en su designio de aplastar a sus rivales, es suficientemente flexible como para "gambetearlos" y confundirlos.

Obsérvese, como botón de muestra, lo que ha hecho Néstor Kirchner en su nuevo papel de presidente del Partido Justicialista. En la primera instancia de su presidencia, jugó con la idea de la transversalidad para relativizar la influencia del peronismo tradicional y de sus referentes históricos, los Duhalde, los Reutemann, los Romero, los Rodríguez Saá. De esta temprana iniciativa surgieron aliados no peronistas, como el cordobés Luis Juez y el mendocino Julio Cobos. Pero la crisis del campo dejó a los Kirchner en clara minoría ante las clases medias rural y urbana. ¿Qué hizo entonces la pareja del poder? Mientras la Presidenta atendía los deberes protocolares intrascendentes, pero insoportables para su marido, que acompañan al cargo, el ex presidente, después de asumir la jefatura del Partido Justicialista, se dedicó a olvidar a todos los K no peronistas y a apretar el control partidario del propio peronismo, llamando para ello a elecciones internas en noviembre, tan próximas que les quitarán tiempo a los peronistas "no K" para presentarle batalla, y conversando además hasta con aquellos que lo habían derrotado en el Congreso.

Siendo los Kirchner eminentemente "cortoplacistas" como son, su absorbente objetivo a partir de ahora será ganar la elección intermedia de octubre de 2009, particularmente en la provincia de Buenos Aires, porque saben que de estas elecciones sólo aparentemente "menores" saldrá el mapa de las elecciones presidenciales de 2011, cuando ella o él debería ser, otra vez, el candidato triunfante. Esta es su meta. Esta es su obsesión. Este es el único "bien común" que tienen en cuenta.

¿Cauce o burbuja?

Sería un grave error suponer que, por haber sufrido la dura derrota que sufrieron, los Kirchner se encaminan inexorablemente hacia el ocaso. Ellos están dispuestos a utilizar todas las armas que les quedan, que no son pocas, para demostrar lo contrario. Todos aquellos que sueñan con acabar con su despótico monopolio entre 2009 y 2011, se equivocarían de medio a medio si, alegremente, los subestimaran. Si tanto los peronistas "no K" como el resto de las fuerzas de la oposición se empeñaran en combatir a los Kirchner dentro del cauce cavado por ellos, librarían la batalla en el terreno elegido por el adversario.

La otra manera de encarar la lucha por el poder que se avecina comenzaría por advertir que hay un curso disponible radicalmente distinto del que encarnan los Kirchner. Porque no es que la ciudadanía tendrá que optar a partir de ahora entre los K y los "no K" que pugnan en el escenario. Lo que ocurre más bien es que, a partir de la rebelión del campo contra el autoritarismo del Estado, se ha abierto en la Argentina otro argumento, otro escenario. Quienes quieran abrir los ojos tendrán que comprender que no es éste o aquel opositor puntual sino la sociedad como tal, con sus clases medias por delante, la que ha despertado. Y no son simplemente los opositores políticos, sino los ciudadanos hambrientos de república frente a la concentración del poder y sedientos de verdad frente a las mentiras del Indec y del poder los que se están movilizando.

Al lado del "argumento K" que hasta ahora se ha desarrollado frente a nosotros, en suma, surge y crece otro argumento, el de una democracia plural y dialoguista a punto de florecer. La lucha ya no será sólo entre banderas partidarias. Será la lucha por un principio frente al cual el poder, que hasta ayer parecía inconmovible, podría demostrar finalmente lo que es en verdad: una burbuja salida de la crisis terminal de 2001, a punto de revelar su inconsistencia.

João Ubaldo Ribeiro

Uma novidade atrás da outra


Não que eu goste tanto atualmente, embora seja viciado, mas todo dia me vejo na obrigação de ler uma porção de jornais, catando assunto sobre o qual lançar a luz do meu entendimento, ou - hélas! - no ver de muitos, as trevas de minha burrice. Mas hoje não. Hoje tem uma pilha de jornais virgens aqui na mesinha atrás de mim. Como metaforizaria um mestre qualquer da nossa prosa cotidiana, não é que me falte o Viagra da curiosidade e do interesse pelo que se passa no mundo, mas me sobeja vasto harém de fatos notáveis, momentosos, assombrosos e semelhantemente adjetiváveis, de maneira que se requer grande virilidade cívico-jornalística de minha parte e, já no avançado de minha idade, sou forçado a obedecer a naturais limitações.

Nariz-de-cera mais cretino, hão de comentar os leitores, não pode ser perpetrado, e concordo. É cacoete velho, no tempo em que enganchava o telex na Bahia e a gente tinha que encher uma bela lingüiça. No caso, porém, é mero cacoete pelo qual peço desculpas. Porque a verdade é que há muito a comentar e me vejo na condição de fazer escolhas dolorosas, palavra, aliás, indicada na primeira notícia (como ainda estou no começo do texto, não sei se acabará por ser a única, sou um escritor desrespeitado a todo instante por textos que insistem e conseguem impor-me sua vontade) que vou mencionar.

Valdemir, genro de Toinho Sabacu, festejado e premiado mestre de boa parte da juventude itaparicana, me falou pelo Skype (isso mesmo, Itaparica tem Skype - como sempre não devemos nada a São Paulo e ainda temos praia) que houve um dia momentoso na ilha, o Dia Oficial da Dedada, o respeitado e temido DOD. O pessoal, como, aliás, em toda parte, não aprecia muito esse negócio de exame de próstata, mas o itaparicano é muito prático. Então, me contou Michelzinho, sobrinho de Zecamunista (que, aliás, parece estar metido numa alta jogada de pôquer internacional e anda sumido), que o comparecimento foi maciço. Acho que a Secretaria ou o Ministério da Saúde (viva! olhem o governo mostrando serviço - bem verdade que, como sempre, é enfiar o dedo no subilatório do contribuinte, mas ninguém pode negar que é serviço) mandou um equipe de urologistas ou digitadores de fiofó, conforme o ânimo de quem os qualifica, e realizou o grande dia.

Houve diversos que botaram paletó e gravata e passaram antes na igreja. Outros chegaram a levar terço ou Bíblia, conforme a profissão religiosa. Alguns tiveram que ser amparados pelas suas santas esposas no caminho, outros passaram a noite anterior em jejum, ainda outros tiveram que tomar doses industriais de Maracugina e chá de camomila e assim mesmo tremiam. Enfim, casos individuais marcantes há diversos e tenho certeza de que não me contaram tudo. Dizem que Magno, do Bar e Restaurante Pandélis, sito no Largo da Quitanda e antes de propriedade de meu finado amigo Zé de Honorina, chegou pálido ao Mercado, com uma lata de cerveja na mão.

- O negócio foi feio! - disse ele. - Dessa vez eu peguei um desgraçado que não tinha pena do toba de ninguém! Desnaturado, filho de uma égua! Foi chegando e carcando, não quis nem saber se eu já tinha feito minhas orações! E o dedo dele era mais ou menos do tope desse salame pendurado aí. Ganhei uma licença-prêmio no Purgatório, meu irmão, vou passar o dia de resguardo, não vou nem abrir o bar.

Posso imaginar o desconforto de meu amigo Magno, bem como o de vários outros concidadãos. A transação de fato era meio heterodoxa, pois, afinal, se qualquer cidadão brasileiro pode obter o mesmíssimo tratamento que o presidente da República, como disse ele, há uma certa dificuldade no deslocamento para o Incor ou o Albert Einstein, nada neste mundo é perfeito, só chega perto da perfeição, como disse também ele. Aí, por falta de infra-estrutura adequada para atender à sempre crescente demanda, o exame era feito em pé. Se é mentira, não é minha, foi o que me contaram. Mas acredito que sim, porque o Homem, um dia destes, precisa fazer outro discurso sobre a saúde no Brasil e afirmar que nunca antes um presidente mandou enfiar o dedo em tantos brasileiros, em tão pouco tempo.

Todo mundo ali empezinho, quase perfilado e dizem que, apesar da tradição de educação sempre zelada pelo itaparicano, nunca se viu tanta gentileza, era só "por favor, pode passar na minha frente", "que é isso, o seu primeiro", "você é mais velho, tem mais direito" e assim por diante. Em pé, mas sem perder a dignidade. E ninguém podia sair de cara alegre. Me falaram que Luiz Olegarino, dono do famoso jegue Suspiro, foi dar uma risada e levou vaia, até conseguir explicar que era de alívio, mesmo porque tinha pegado o dedista mais miudinho, um careca que todo mundo disputava para ver se caía nele.

Enfim, só lamento ter estado ausente em ocasião tão rica porque, na minha condição de itaparicano, eu provavelmente teria de mostrar fibra e participar, mas, aqui para nós, que isto não passe daqui, exame como os que tenho feito aqui, tudo bem, vamos dizer. Mas em pé requer um condicionamento que temo não ostentar. Se bem que, embora eu saiba que ele vai desmentir, também me disseram que Toinho Sabacu fez questão de passar por cinco médicos, porque adorava ouvir elogios à sua próstata, para depois botar banca no Mercado de que a melhor próstata da ilha, na categoria quase setentinha, é a dele.

Pronto, acabou o espaço. E eu que ainda queria falar na idéia turística que tiveram, de promover anualmente o concurso Mister Próstata e Miss Colo do Útero. Mas, pensando bem, isso já está me cheirando a descaração, deve ser bolação de Beto Atlântico e Gugu Galo Ruço. Não, daqui a pouco inventam o Bolsa Dedada, há um limite para tudo.

Daniel Piza

Planetário

Daniel Piza, E-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br Site: www.danielpiza.com.br


Sempre estranho em boa parte das discussões entre economistas a ausência de uma perspectiva cultural e histórica. Em alguns clássicos isso é muito forte, como em Adam Smith, que na verdade fez em A Riqueza das Nações uma comparação entre a colonização da América do Norte e a da América do Sul, mostrando que naquela a mentalidade gerou uma economia de mercado e não apenas uma exploração de bens e tributos. Mesmo Marx, apesar de suas teses sobre a "queda geral da taxa de lucros", a cartelização auto-implosiva a que o capitalismo estaria condenado, gastou muito mais páginas de O Capital tentando entender a sociedade industrial de seu tempo, na qual a burguesia era composta pelos proprietários dos meios de produção, não pela classe média com que o termo foi identificado no século 20. Mas, principalmente depois dessa cisão entre defensores do capitalismo e do socialismo, a economia passou a ser assunto teórico demais, como se a disciplina se confundisse com uma ciência exata e em parte desligada dos contextos sociais e comportamentais.

Hoje, derrubado o muro de Berlim e terminada a Guerra Fria, o debate deixou de ser entre capitalistas e socialistas, mas ainda são poucos os que vêem o sistema econômico mais permeável aos valores imateriais. No início do século 21, ainda continuamos sob o tom de um debate que opõe como seus maiores representantes as idéias de Keynes e as de Hayek. Para os social-democratas, Keynes justifica sua defesa do Estado do Bem-Estar Social, do governo como condutor da economia e acima de tudo como protetor daqueles que são postos de canto pelo mercado competitivo. Para os liberais ou neoliberais, Hayek é o pregador do livre mercado, da sociedade aberta capaz de se auto-regular pela simples conversão do cidadão em consumidor. Quando lemos esses autores, no entanto, vemos que não é bem assim. Keynes participou da formação de diversas instituições que os estatistas detestam, como o FMI, e sempre foi o primeiro a lembrar que sua tese de que o Estado pode ter um papel anti-recessivo foi pensada para o contexto da depressão pós-1929. Hayek também não era um conservador como os privatistas, que acham que o mundo se divide em perdedores e vencedores, numa espécie de "lei natural" da economia humana, e que dizem que o Estado deve, no máximo, ser um guarda de trânsito, um gerente de crises.

A redução desse debate a um confronto quase diametral de "modelos" causa prejuízos até hoje. É verdade que alguns autores tentaram pensar numa "terceira via", que não é - como parecem pensar alguns autores brasileiros - um meio-termo entre socialismo e capitalismo, mas entre social-democracia e livre mercado. Países europeus, sobretudo, se viram obrigados nos anos 90 a diminuir a carga estatal para que suas economias reagissem à "nova economia" com seu surpreendente dinamismo tecnológico e financeiro, à internacionalização e seus custos e oportunidades. Essa tarefa, mesmo depois do euro, está longe de ter sido cumprida satisfatoriamente. Mercados emergentes no sudeste asiático e, agora, China e Índia crescem em ritmo muito maior, lançando ao mundo tanto o temor como a atração de um potencial de bilhões de novos consumidores. Por outro lado, mesmo nesses países é clara a importância do agente estatal como indutor e coordenador da economia; o tal "Estado mínimo" é igualmente utópico, já que não existe na prática em lugar nenhum do planeta. Para relembrar termos do debate da década passada, o fim da História não veio, mas, apesar de cenas como a dos atentados de 2001, as civilizações não estão apenas em choque.

Essa complexidade da globalização, essa irredutibilidade da economia a modelos matemáticos e fórmulas universais (como o tal consenso de Washington), pode ser vista muito bem no caso da China. Preocupada em não se dissolver territorialmente como a ex-União Soviética e em competir com os "tigres" em ascensão como Tailândia, Coréia do Sul e os demais, o dragão de Pequim acelerou o processo iniciado por Deng Xiaoping há exatamente 30 anos e agora chegou a um crescimento tão robusto quanto peculiar. Imediatamente as opiniões se dividiram: para uns, seria um triunfo do dirigismo, da economia planificada, determinada de cima para baixo por um bando de visionários; para outros, seria uma adesão incondicional ao capitalismo, à economia de consumo, inclusive com desdobramentos democráticos supostamente inexoráveis. Os primeiros, porém, alertam para o risco da ampliação da desigualdade social, como se fosse possível toda a população enriquecer proporcionalmente ao mesmo tempo; e os segundos acham que o controle estatal tem seus dias contados, devido aos custos inerentes à ilusão de que se pode prever tudo. Ao final, tem-se a velha dicotomia entre desenvolvimentistas e monetaristas, para citar o repertório latino-americano desse debate.

Talvez os instrumentos já não se apliquem ao paciente. Quem vê na China a virtude dirigista não pode ignorar que mais de 60% do crescimento do PIB atual vêm das atividades privadas, que o país tem impostos baixos e que cada dia aumenta mais sua abertura comercial. Quem vê nela apenas os efeitos da liberalização desdenha do trabalho feito em lugares que vi como o Business District em Pequim e o "Vale do Silício" em Chengdu, onde o governo é extremamente atuante, em especial na infra-estrutura; e esquece que bancos, exploração do subsolo, meios de comunicação e outros serviços são estatais. Mas também me parece um equívoco equivalente pensar que isso significa que o modelo híbrido chinês - essa "economia dirigida de mercado", como já li - possa ou deva ser copiado. E aqui entra a importância do dado cultural, perspectivista. Numa sociedade confuciana, que aceita em tese as medidas como o partido único e o filho único, além do controle de migração, pois teme a anarquia de um ex-império de 1,3 bilhão de habitantes, essa dosagem de público e privado funciona - ou está funcionando -, mas em outros obviamente não funcionaria. Cada cultura tem de achar essa dosagem e revê-la constantemente.

Afinal, a própria "fórmula" chinesa tem sua acidez. Não há garantia de que as novas gerações - mais consumistas, americanizadas e críticas do que a de seus pais e avós - não queiram um dia que as mudanças políticas sigam as econômicas. Jovens em Pequim admiram os de Tóquio, Seul, Hong Kong e Taipei, em relação aos quais se sentem defasados em termos de modernidade e liberdade. Os problemas sociais também são grandes, como a carência de aposentadoria e seguro-saúde, e a indústria ainda vive sua fase de maquiagem, com muita pirataria e poluição. A compra de parte da IBM pela Lenovo e o investimento em centros de pesquisa são exemplos de que a China sabe que ainda tem muito a andar no mundo competitivo; que não pode viver apenas do "diferencial" do tamanho da população. Mas nesse aspecto é que pode servir não de modelo, e sim de inspiração para outros países em desenvolvimento: a China já sabe que educação e tecnologia são as transformações mais preciosas. Até que ponto saberá monitorar as aberturas comerciais e culturais, claro, é questão em aberto. Mas que seu progresso tem muito a ensinar para o ansioso e dicotômico Ocidente, a começar por seus economistas, não resta dúvida.

RODAPÉ

Outro livro que vale a pena editar no Brasil é China Shakes the World, de James Kynge, jornalista inglês que viveu 19 anos no país como correspondente do Financial Times. Ele mostra como a hierarquia rígida é um traço antigo da cultura chinesa, impregnado em seu modo de produzir e negociar, mesmo nesta fase de abertura à globalização. Forjado em mão-de-obra barata, o crescimento atual da China também se deu sobre bases duvidosas. Mao promoveu a explosão demográfica (580 milhões em 1953, hoje mais que o dobro) e o empobrecimento amplo, além da lavagem cerebral. Mas a capacidade de trabalho dos chineses e a recente política de entendimento pacífico com os estrangeiros, as quais se tentaram expor na Olimpíada, estão mesmo chacoalhando o mundo.

POR QUE NÃO ME UFANO

Vejo diversos programas na CNN com perfis de Obama e McCain e o início das convenções americanas. "It?s showtime!", grita o locutor. As propostas de um e de outro continuam vagas, e a campanha não vai além da troca de acusações pessoais, como a de que Obama não parece americano e McCain tem nove mansões... Soa familiar, não? Mas a diferença de uma democracia madura é que, embora o sujeito no poder exerça grande papel simbólico, a sociedade não depende tanto de suas decisões para continuar funcionando. Já em outras latitudes, os pacotes e as omissões do grupinho que comanda a política afetam todos os cidadãos imediatamente.


Aforismos sem juízo
A alegria alheia alegra. A felicidade, com seu indissociável componente de auto-satisfação, é que mata de inveja

DORA KRAMER Polícia de boa vizinhança

dora.kramer@grupoestado.com.br

50 anos de idade, quase todos da fase adulta dedicados à defesa dos direitos humanos, o secretário nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, Ricardo Balestreri, vai logo avisando: “Não sou um romântico”.

Faz a ressalva meio na defensiva, a título de introdução à análise sobre as razões pelas quais, na sua visão de estudioso, consultor e agora executivo da área de segurança pública, os governos do Brasil pós-redemocratização não conseguem dar um passo adiante no combate à criminalidade.

São quase que meros espectadores inertes do agravamento da situação. Isso embora a insegurança esteja no topo da lista das preocupações da população e, nem Fernando Henrique Cardoso nem Luiz Inácio da Silva - para citar apenas os dois eleitos e com mandatos em ambiente de normalidade institucional - possam ser acusados de insensibilidade política e social.

Cuidaram da economia como quem amamenta um bebê a inspirar cuidados permanentes. Sabem que, se tivessem dado um jeito pelo menos na contenção da violência, seriam sérios candidatos à consagração unânime.

Se não é alienação, indiferença ou desumanidade, qual é o obstáculo? Nos dois grupos, antagônicos no campo partidário, a dúvida perpassa, mas não produz uma resposta.

Ricardo Balestreri não concorda com uma tentativa de explicação, segundo a qual a geração oriunda da esquerda quer distância de assuntos ligados à repressão. Por motivos óbvios.

O secretário nacional de Segurança acha simplista o raciocínio, embora sustente sua análise a partir de uma premissa relacionada aos procedimentos do governo autoritário. “A ditadura afastou a polícia do povo e a democracia ainda não devolveu.”

E por quê? “Porque nos países premidos pelo senso comum, a discussão fica rasteira, muita gente palpita, poucos entendem e, como a violência causa sofrimento e fadiga, o cidadão cobra com emoção, o poder público procura corresponder também com emocionalismo que, mal conselheiro, não resolve nada.”

Nesse ambiente, aponta o secretário, acaba prevalecendo a lógica da eliminação: trancafiar todo mundo, matar a maioria.

“Prendendo todos conseguiremos, no máximo, aumentar o contingente de doutores no crime e, matando, não resolvemos porque no dia seguinte o bandido é substituído por outro convocado no exército de reserva das organizações de delinqüências, em geral mais jovem e mais cruel. Se matar fosse a solução, o Brasil, com seu enorme índice de letalidade de criminosos, seria o país mais seguro do mundo.”

Portanto, na opinião dele, a primeira tarefa é alterar procedimentos. “A lógica do Estado tem de ser a da racionalidade, do conhecimento, da informação, da repressão qualificada.”

Antes de prosseguir na receita, segundo ele em parte já em execução pelo Ministério da Justiça, Balestreri esclarece uma questão: acha um equívoco falar em poder paralelo do crime. “Isso não existe, assim como não é na favela que mora o crime organizado.”

O poder do crime, hoje, diz, não é paralelo, é “transversal” ao Estado, perpassa todas as instâncias oficiais, “freqüenta os melhores ambientes e, por isso, é tão difícil de combater”.

O secretário remexe na ferida: “Por que no regime militar o Estado conseguia combater quem via como inimigo e hoje não consegue”? Contaminação decorrente de corrupção.

Mas não só e aqui chegamos onde ele localiza o verdadeiro crime organizado. “Nas altas esferas do poder econômico e político. A raiz está em cima. Os delinqüentes, ainda que de porte, são empregados dessa gente que não põe diretamente a mão na lama, mas está à frente de uma indústria poderosa que hoje representa um quarto da economia mundial.”

Então, estamos perdidos, sem solução?

Ricardo Balestreri não confunde dificuldade com rendição. Do povo “de cima” acha que a Polícia Federal (“com todas as imperfeições”) começou a cuidar quando se voltou primordialmente para os crimes de colarinho-branco. Este é um patamar.

No outro, da esfera do dia-a-dia, que chama de “crime ordinário” - o assalto, o estupro, o homicídio, a ação de gangues - a solução por ele sugerida é a reforma das polícias, mas na direção oposta à da tese de aceitação geral sobre a unificação das polícias civil e militar.

“Seria o mesmo que obrigar um casal em desarmonia a viver junto, o risco de se matarem é grande.” Na opinião dele, cada uma das polícias deveria ter autonomia para fazer o trabalho completo de prevenção, investigação e prisão.

“Do jeito como está hoje temos duas meias polícias e não temos nenhuma. A militar trabalha no modelo ultrapassado do radiopatrulhamento em que a polícia passa mas não fica e não está presente quando o cidadão precisa, e a civil é um cartório de ocorrências mortas”, diz o secretário.

Há esperança de mudança em breve?

“Vou defender que o governo Lula não termine sem apresentá-la.”

Quando? “A partir de 2009 seria bom.”

De fato. Basta convencer suas excelências a prestarem atenção em alguma coisa que não seja a sucessão de Lula.

Boas notícias e desafios para o Brasil Alberto Tamer,

A economia americana surpreendeu novamente. Cresceu a um ritmo médio anualizado de 3,3%, no segundo trimestre. Um resultado impressionante, tendo em vista que o anterior tinha sido de 0,9%. Recuperação que mostra um vigor talvez capaz de compensar o recuo da União Européia. Agora, poucos ousam falar em recessão neste ano. Decididamente, foi a notícia mais importante da semana.

Para o Brasil, é uma notícia auspiciosa, pois, como país isolado, os EUA continuam sendo nosso maior mercado importador e o primeiro parceiro mundial - US$ 49,3 bilhões anualizados em julho, seguido pela China, US$ 31,9 bilhões.

É A CHINA, COMPANHEIRO...

Os economistas fora dos quadros do governo, que o presidente regularmente consulta, mostraram-se durante a semana preocupados com os efeitos da desaceleração americana sobre nossa economia. Certo, mas agora deveriam preocupar-se mais com a China. Afinal, estamos convivendo há mais um ano com a retração americana e não estamos nos saindo tão mal. Só não sabemos o que pode acontecer se a China - e, conseqüentemente, a Ásia e outros países dos quais importa - parar de crescer a 10% ao ano.

Nossa relação com ela é ambígua. A China nos ajuda e incomoda. Atrapalha porque nos rouba mercado externo e compete com seus produtos no mercado interno; ajuda porque importa o que temos e, ao crescer, beneficia não só a nós, mas outros parceiros comerciais do Brasil.

A ECONOMIA MUNDIAL ESTÁ INDO BEM

As notícias da semana são ótimas. Primeiro, o governo chinês deu sinais de que vai investir bilhões de dólares para incentivar a demanda interna e compensar a retração do mercado externo. Segundo, o Japão anunciou que vai injetar US$ 107 bilhões para ressuscitar a economia há dez anos agonizante. E terceiro, essa notável recuperação americana, que parece estar sacudindo as cinzas e querendo dar a volta por cima. Mas, pode mesmo?

Para responder a essa pergunta, economistas e analistas americanos buscavam as causa da ainda suspeita retomada do PIB. Afinal, não seria um fenômenos esporádico e virá um terceiro trimestre arrasador?

Sim, poderia não dar certo se ela se devesse só ao aumento do consumo interno, que pode ser passageiro. É verdade que o governo entregou dinheiro aos consumidores, que saíram comprando, mas isso acaba; é verdade que a Bolsa se recuperou, trazendo recursos para pequenos e médios investidores. Mas, argumentavam, não se pode confiar na Bolsa; a situação é instável, tanto pode continuar em alta como levar um tombo.

Outro fator de dúvida é a inflação, que corrói salários e renda. E aqui vão pesar os preços das commodities e a evolução dos preços do petróleo, hoje imprevisível. Finalmente, não se sabe como o Fed (o banco central americano) vai reagir, se estimula a economia, reduzindo o juro, ou se dará prioridade à inflação, se ela passar de 6%.

Os indicadores do segundo trimestre mostram que o salto do PIB se deveu essencialmente ao aumento das exportações. Elas aportaram à economia US$ 85,4 bilhões, ou seja, 3,1% mais que no período anterior, quando a receita das vendas ficou em US$ 66,8 bilhões.

Isso, entre outros fatores, permitiu que as empresas lucrassem US$ 1,361 trilhão, após dedução dos impostos. O aumento foi de 1%. É pouco? No primeiro trimestre o lucro havia caído 7,7%. É um bom resultado, que anima as empresas na Bolsa e na economia, mesmo se considerarmos que, em 12 meses, o lucro das empresas declinou 5,9%. Já foi pior.

HÁ UMA PEDRA NO CAMINHO

Sim, há uma pedra no meio do caminho; pequena, por enquanto, mas poder aumentar. O que estamos vendo hoje é:

1. As exportações estão proporcionando a retomada da economia americana. Elas aumentaram 13,2% no segundo trimestre ante 5,1% no primeiro.

2. Isso somente poderá ser mantido se os países importadores, principalmente emergentes e em desenvolvimento, continuarem comprando.

3. Aqui, a pedra: as importações americanas recuaram 7,6%, mais do que os 6,6% do primeiro trimestre.

Conclusão: se o ritmo de exportação americana continuar crescendo e o da importação recuando, os emergentes e em desenvolvimento - nós - terão menos espaço nos EUA. Além disso, perderão competitividade para produtos americanos, beneficiados pela desvalorização do dólar, que reduz os seus preços reais e aumenta os nossos. Isso poderá afetar o crescimento dos emergentes que, paradoxalmente, sustentam o da economia americana e mundial.

Para esse desafio, economistas apontavam como saída três caminhos para todos: estimular e fortalecer a demanda, o mercado interno, para reduzir a dependência do exterior; enfrentar a inflação; administrar as conseqüências da alta do petróleo sobre a inflação.

Mesmo assim, haverá forte pressão inflacionária, como vemos hoje. Para isso, economistas têm uma receita nada agradável. Conhecida, mas pouco lembrada: alta de preços se cura com a alta de preços...

Se eles aumentarem muito, as pessoas compram menos, sobram produtos e os preços caem... E aí entra o empurrão da alta de juros dos bancos centrais. Vejam o nosso caso. Está dando certo. Um tratamento doloroso e perverso, pois passa por desaceleração às vezes forte do crescimento econômico. É o que está acontecendo no mundo. Também. Mas não é nada que não se possa suportar.

''A riqueza do pré-sal depende do tamanho dos investimentos''

Entrevista

Luiz Paulo Vellozo Lucas: deputado (ES); para o deputado tucano, as descobertas das reservas gigantes na Bacia de Santos são fruto da Lei do Petróleo, de 97

Christiane Samarco, BRASÍLIA

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O debate sobre as reservas do pré-sal não deveria tratar de receitas e gastos, mas de investimentos. O alerta é feito pelo ex-prefeito de Vitória (1996-2004) e deputado federal Luiz Paulo Vellozo Lucas (PSDB-ES). Ele fala com a autoridade de quem participou, como alto funcionário do BNDES, no início dos anos 90, dos primeiros estudos sobre a regulação do mercado de petróleo e gás e do modelo que transformaria a Petrobrás numa potência investidora e líder do mercado depois do monopólio quebrado - o que foi feito no primeiro mandato do governo Fernando Henrique (1995-1999).

Vellozo Lucas diz que o governo está produzindo desconfianças desnecessárias entre os investidores privados e desvalorizando o trabalho e as ações da Petrobrás. O poder da estatal, afirma, deve ser controlado pela Agência Nacional de Petróleo (ANP), mas desde que o governo não use politicamente o órgão regulador.

Qual é a sua avaliação sobre o debate em torno das reservas do pré-sal?

Acho que o governo está conduzindo muito mal o debate. Desde descoberta de Tupi, no ano passado, e da retirada dos 41 campos próximos a Tupi da nona rodada (de leilões da ANP), o governo vem bombardeando sociedade com ameaças de mudanças regulatórias, fala em adequação do modelo e diz que as gigantescas reservas pertencem ao povo brasileiro. As reservas já pertencem ao povo, como está na Constituição. Esse negócio de ficar dizendo que o pré-sal precisa gerar riqueza para o povo brasileiro é má fé. Não é só desinformação.

O governo e seus porta-vozes dizem que é fundamental saber se a riqueza ficará com o Estado ou irá para o balanço das empresas?

A riqueza entra no balanço das empresas para remunerar os investimentos, como se aprende no curso básico das escolas de Economia. A remuneração do Estado se dá na forma dos bônus, royalties e participações especiais. Só haverá investimento se houver remuneração. Quem compra ações da Petrobrás é um investidor, e ele compra porque a empresa gera dividendos e lucros.

Por que o sr. defende que não se mexa no modelo atual, que é baseado na Lei 9.478, de 1997, mesmo diante das descobertas do pré-sal?

De todas as reformas estruturais feitas no País, a do setor de petróleo, foi a mais espetacularmente bem sucedida. Produziu o sucesso da reestruturação competitiva do setor de petróleo e gás. E a prova do sucesso absoluto do modelo são as descobertas do pré-sal.

O que foi que Lei de 1997 fez de tão espetacular?

O setor de petróleo e gás era 2% do PIB, e hoje representa 10%. O Brasil produzia 800 mil barris de petróleo/dia, dez anos depois a produção/dia saltou para 1,9 milhões de barris. Não produzia nada de gás, e hoje são 62 milhões de metros cúbicos/dia. O Brasil tinha uma empresa de petróleo operando no mercado, a Petrobrás, e hoje são 71 empresas. Há dez anos, os investimentos eram do tamanho da capacidade da Petrobrás, da ordem de R$ 4,5 bilhões, mas em 2007 os investimentos ficaram na casa dos R$ 25 bilhões: em torno de R$ 5 bilhões do setor privado e cerca de R$ 20 bilhões da Petrobrás.

Mas não precisa mudar nada, mesmo diante da nova realidade das reservas?

É claro que tem de fazer ajustes. Todo mundo acha que pelo nível atual dos preços, pelo gigantismo das reservas, e pela redução do risco exploratório, a parte que cabe ao Estado brasileiro pode aumentar muito. Mas esqueçam a nova estatal. Isso é coisa de quem está querendo um Ministério do Petróleo.

Dá para aumentar a parte da União e manter investimentos sem a nova estatal?

Não há nenhum ajuste que não possa ser feito dentro do marco regulatório da Lei do Petróleo (9.478/1997). Adaptações precisam ser feitas para que o Estado brasileiro participe da rentabilidade desse negócio nas proporções justas, que permitam os investimentos. Mas nada disso precisa de contrato de partilha nem de nova estatal. As multinacionais preferem contrato de partilha onde tem risco político, como no Iraque. É modelo mais primitivo que concessão, que dá mais segurança política, jurídica, contratual. Não há nada que o contrato de partilha faça que o contrato de concessão não permita. A remuneração do Estado se dá através de bônus - outorga que a concessionária paga no leilão. Quanto menos risco, maior o valor do bônus de assinatura. Isso foi inventado exatamente para permitir que a participação do Estado brasileiro possa se adaptar a níveis mais altos de rentabilidade, seja quando o preço sobe muito ou se descobrem novas reservas, que é exatamente o caso do pré-sal.

O governo argumenta que a Petrobrás só fica com 30% do lucro do que produz, que o resto fica com o capital privado, boa parte internacional.

A Petrobrás é uma operadora de petróleo, igual à Shell, à BG, à Galp etc. A remuneração do setor público não se dá pelos lucros da Petrobrás. Essa é outra confusão que o governo está fazendo. A missão da Petrobrás é ser empresa líder, o que inclusive dá segurança a seus parceiros internacionais, garante que não haverá no Brasil mutretas do tipo das que foram promovidas por Evo Morales na Bolívia.

E o argumento sobre o valor estratégico das reservas do pré-sal, o controle do óleo, se fica aqui ou pode ser exportado?

Petróleo vira riqueza na hora que é vendido. A agregação de valores é uma questão de política industrial. A discussão a partir dessas descobertas é como vamos mobilizar os investimentos necessários para aproveitar esse potencial de riqueza. Antes de mais nada, essa é uma discussão sobre investimentos, e não sobre receita e gastos. A riqueza de verdade virá dos investimentos públicos e privados que vamos mobilizar. O tamanho do setor depende do tamanho das reservas, mas depende principalmente do volume de investimentos que se consegue alavancar. Uma fazenda só vira riqueza se um produtor investir e plantar.

O governo não fez bem em retirar 41 blocos da nona rodada de leilões da ANP, porque estavam próximos do pré-sal de Tupi e outros campos?

Deixe lembrar o seguinte: as descobertas de Tupi foram da rodada de 2000, sete anos depois. Está lá a Petrobrás junto com a BG, a Shell, a Repsol, a Petrogal, a Galp. Não é só Petrobrás. Tem as empresas que em grande parte investem junto com a Petrobrás, que é quem melhor conhece o setor e quem mais conhece a exploração em águas profundas.

Esse debate que está enfraquecendo a Petrobrás?

A Petrobrás já foi enfraquecida quando falaram em desapropriação dos contratos dela. Isso é uma sandice. Serviu para George Soros (megainvestidor dos EUA) comprar um monte de ações a preço baixo. Foi para isso que serviu a especulação negativa feita pelo falatório do governo.

Há no governo muitas queixas contra a Petrobrás, que ela é uma empresa poderosa e que ninguém controla.

Se não controla, então vamos fortalecer a ANP, que está enfraquecida. A agência ficou sem diretor, a Fazenda contingência verbas que ANP necessita para pesquisa. O governo desmoralizou as agências desde o primeiro dia. Agora dizem que Petrobrás está forte demais?! Culpa do governo que não fez o que devia. É só deixar a ANP fazer o trabalho dela, colocar gente competente lá, gente que sirva ao Estado brasileiro, e não a governo ou partido político.

O sr. quer dizer que a Petrobrás está agindo no vazio da ANP?

Na fraqueza normativa do Estado regulador. O governo do PT não acredita no Estado normativo. Contribuiu para desmoralizar o poder de normatização do Estado. Ele gosta de exaltar o papel do Estado produtor, provedor, quando o que é nobre na função do Estado não é lambuzar a mão de petróleo, mas fazer normas e regras para que o petróleo gere tecnologia, empregos, renda e impostos. O modelo é moderno. Quando foi criado, o presidente da ANP, Haroldo Lima era deputado (PC do B-BA) e esbravejava contra a Lei do Petróleo e o marco regulatório. Mas foram os "entreguistas", como ele dizia, que fizeram a auto-suficiência e a Petrobrás se internacionalizar para chegar à descoberta do pré-sal.

E o debate sobre a nova divisão dos royalties?

Esse debate dos royalties é parente do debate da reforma tributária e do pacto federativo. Nós, do PSDB, achamos que há dois debates. Estamos bem avançados em um, que é a questão do modelo, as adaptações da Lei do Petróleo e da exploração. O segundo é federativo porque trata da destinação dos recursos e não cabe misturar com o primeiro. Não vamos paralisar o setor porque os royalties não estão bem distribuídos. Se o governo federal acha injusto, que faça como fez o Espírito Santo, o único Estado que tomou a iniciativa de mexer no reparte. O governador Paulo Hartung (PMDB) pegou 25% dos royalties do Estado e distribuiu para os municípios que não têm petróleo, inversamente proporcional ao IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). A União pode fazer o mesmo e distribuir parte da fatia que lhe cabe entre os Estados que não têm petróleo.


Quem é:
Luiz Paulo V. Lucas

Engenheiro de produção formado pela UFRJ, com pós-graduação em desenvolvimento econômico (BNDES) e economia industrial (IEI-UFRJ)

Eleito Prefeito de Vitória (ES) em 1996 e foi reeleito no ano 2000

Foi Secretário de acompanhamento econômico do Ministério da Fazenda no governo FHC, entre 1995-96

A maldição do petróleo Maílson da Nóbrega

Em declaração recente, a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, assegurou que o Brasil não será vítima da maldição do petróleo. Assim, as riquezas do pré-sal não seriam desperdiçadas, ao contrário do que ocorreu em outros países. Se, todavia, vingarem as propostas em curso - criação da Petrosal e mudanças no marco regulatório - a ministra poderá ser desmentida pelos fatos.

A idéia da "maldição" apareceu em artigo de 1995, de Jeffrey Sachs e Andrew Warner. Os autores mostraram que os países ricos em recursos naturais crescem menos que os que não os possuem em abundância, o que constitui um dos surpreendentes aspectos da vida econômica (Natural Resource Abundance and Economic Growth, disponível em www.nber.org/papers/w5398).

O estudo abrangeu uma amostra de 95 países em desenvolvimento, exportadores de produtos agrícolas, minérios e combustíveis, no período de 1970 a 1990 (hoje, as análises focam mais o petróleo). Constatou-se que, na média, os que iniciaram com alta participação desses recursos nas exportações tiveram menor desenvolvimento nos 20 anos seguintes.

Os países pobres de recursos naturais têm tido melhor desempenho, há muito tempo. No século 17, a Holanda eclipsou a Espanha, apesar da abundância de ouro e prata de suas colônias no Novo Mundo. Nos séculos 19 e 20, a Suíça e o Japão superaram a Rússia rica de recursos naturais. Mais recentemente, Coréia, Taiwan, Hong Kong e Cingapura enriqueceram sem ter abundância desses recursos.

A posse de recursos naturais deixou de ser uma vantagem decisiva no processo de crescimento econômico, mas é surpreendente que tenha se transformado em uma desvantagem. Por isso, os autores perguntam: "Há uma maldição da riqueza fácil?"

Várias são as explicações para o fenômeno. A abundância de recursos naturais inibiria a industrialização, reduzindo o seu papel na elevação do conhecimento e, assim, no crescimento econômico. Nos países pobres desses recursos, a alternativa é o desenvolvimento industrial. Os trabalhadores investem em educação, pois isso lhes dá vantagens sobre aqueles que não se educam. Daí surgem mão-de-obra qualificada e professores mais preparados para melhor educar a próxima geração.

A abundância de recursos naturais tem gerado corrupção e burocracias ineficientes. Por outro lado, os gastos correntes crescem em detrimento de ações favoráveis ao crescimento, como a infra-estrutura e o fortalecimento das instituições. Políticas de desenvolvimento lideradas pelo Estado, incluindo programas de substituição de importações, beneficiam os grupos de interesse que lutam por elas.

A meu ver, nesse processo é decisiva a importância da educação, das crenças da sociedade e da solidez das instituições. A abundância de carvão mineral impulsionou, em vez de reduzir, o desenvolvimento do Reino Unido no século 19. Os EUA, ricos em recursos naturais, foram exportadores de petróleo e enriqueceram sem criar empresas estatais para a sua exploração. As descobertas de petróleo no Mar do Norte não resultaram em desperdício de oportunidades pelos países que delas se beneficiaram.

A fraqueza das instituições, particularmente das que restringem o arbítrio e inibem o populismo, está na raiz da "maldição" que impede a Nigéria, a Venezuela, os países árabes e outros produtores de petróleo de acelerar o seu crescimento. Infelizmente, a julgar pelo que diz o governo, seus aliados e os "desenvolvimentistas", o Brasil pode trilhar esse caminho. De fato, a criação de uma estatal moldada no exemplo da Noruega (sem as instituições e as práticas gerenciais do setor público norueguês) e as mudanças do marco regulatório do petróleo podem custar caro à sociedade. Os recursos seriam gastos em programas sociais, em vez de serem poupados de modo a promover o crescimento e beneficiar também as futuras gerações (como na Noruega). Demanda-se a utilização das receitas em prol de uma "política industrial", o que repetiria erros passados e beneficiaria grupos de interesse com subsídios generosos. Se o debate não convencer o governo e sua base no Congresso de que as propostas sob exame são no mínimo temerárias, podemos assistir à adoção de medidas erradas de difícil reversão e de efeito contrário ao que seus idealizadores imaginam. Não escaparíamos da "maldição".

*Mailson da Nóbrega é ex-ministro da Fazenda e sócio da Tendências Consultoria Integrada (e-mail: mnobrega@tendencias.com.br)