domingo, julho 27, 2008

Daniel Piza

O bom combate


O amor é o oposto do comunismo: a cada um de acordo com sua capacidade, de cada um de acordo com sua necessidade.

O mundo ideal para os artistas e autores de países como o Brasil é aquele onde não existam críticos, apenas patrocinadores. A qualidade deveria ser exclusivamente medida pela audiência, não por esses mal-humorados que ficam procurando defeitos em tudo. Isso não é exclusivo dos artistas, claro: é óbvia a dificuldade da maioria das pessoas em lidar com a opinião crítica, por mais criteriosa que seja. Como se vê em alguns blogs, os argumentos ficam em segundo plano e o tom predominante passa a ser o Corinthians x Palmeiras de sempre, cada qual querendo ganhar a discussão no grito e na botinada. Na maioria dos casos, nem sequer leram direito o que estava escrito no começo.

Outro dia vi uma professora elogiando Antonio Candido por jamais ter respondido ao livro de Haroldo de Campos sobre o barroco e dizendo que isso mostrava uma maturidade do debate no Brasil. Bem, é a primeira vez que vejo alguém dizer que o não-debate significa um avanço no debate... Me fez lembrar uma conversa que tive com um bom cineasta brasileiro na qual ele definia a função das resenhas de jornal da seguinte maneira: o crítico deve compreender o filme, descrevendo suas intenções, e se tiver ressalvas deixá-las para o final, quase como contribuição ao cineasta. Deve ser isso que chamam de ''crítica construtiva''. Eu chamo de complacência, de fuga ao debate. O próprio Candido se orgulha da fase combativa que teve em seu auge.

Fiquei feliz ao saber que Aderbal Freire-Filho tinha escrito uma resposta à crítica que fiz de sua encenação de Hamlet com Wagner Moura - e que o tinha feito em termos educados, coisa ainda rara por aqui. Mas a grande maioria das linhas de seu longo texto, publicado neste caderno na quinta-feira, é uma defesa da montagem pelo fato de que está fazendo sucesso de público; o único motivo por que ele, o diretor, estava se dando ao trabalho de comentar o texto do ''cronista'' e ''blogueiro'' era o medo de que ''alguém perdesse a oportunidade rara de ver um Hamlet por causa de maus-olhados''. Tudo que eu quis foi pendurar uma placa ''cuidado com o diretor'' na entrada do teatro, para sonegar ao público o acesso à obra-prima.

Se seguisse a linha de raciocínio de Freire-Filho, eu poderia informar a ele que numerosas pessoas, entre elas alguns profundos conhecedores do riscado, tiveram a mesma opinião que eu. Ou então dizer que minha idéia não era apenas alertar ''cuidado com o diretor'', mas também ''cuidado com o elenco, com a tradução, com o figurino, etc''. De qualquer modo, não há em seu texto nem uma frase sequer a respeito do ponto central da minha crítica: ''É claro que Hamlet é alguém que exagera sua suposta loucura (...). Mas ele seria o primeiro a lembrar que a loucura não se agita desse modo sem parar, até porque levantaria a dúvida dos outros sobre sua veracidade.''

O diretor prefere convidar o leitor a ''ver com seus olhos que o fogo do espetáculo há de queimar''. Se escrevi que o teatro é um dos temas principais da peça (como são o choque entre razão e palavra, a disjunção entre justiça e vingança e o medo da morte), Freire-Filho assegura que quem disse ser o único tema foi o próprio Shakespeare, não sei se em sessão mediúnica. Depois cita uma frase minha, de que a necessidade de acentuar o humor e a ação da peça veio ''talvez do medo de entediar a platéia com o texto elaborado e metafórico de Shakespeare'', sem transcrever o ''talvez''. E pergunta como pode ''um bom leitor de Machado'' dizer que um texto assim ''é entediante''. Releia minha frase, respeitável bilheteria. Não sou eu que digo que o texto é entediante. Tanto é que não o quero pontuado por gritos e saltos a cada duas falas.

Sobre a tradução, o menor dos problemas da montagem, Machado também usava ''país indescoberto'', não o ''desconhecido'' que ela usa; e não existe razão nenhuma para traduzir ''conscience'' por outra palavra que não ''consciência'', como faz Bárbara Heliodora, entre outros tradutores. E se o diretor realmente acha que o abuso do recurso do vídeo não ajuda a glamourizar o ator em vez da atuação, basta que se sente ao lado do público que tanto quer cortejar e verifique o impacto do show de Moura. A minha foi apenas a reação de alguém que saiu de casa para ver uma peça que ama e um ator que admira, e teve seu prazer atropelado por um Hamlet que parece ter tomado anfetamina.

Machado, por sinal, não respondeu ao livro em que Silvio Romero desancou sua obra porque seria contaminada pelos defeitos do autor, como sua pele mulata e sua epilepsia, o que explicaria sua falta de gosto pelo moralismo e pelo exagero tão brasileiros. Machado não gostava de controvérsias, como dizem os velhinhos da Academia? Não, Machado participou de muitas, enfrentando até o popular Eça de Queirós. Mas achou que Romero o ''espancava'' em vez de criticar sua obra. Felizmente, não foi isso que Freire-Filho fez em seu texto. O que fez foi tergiversar, voltando as costas para os versos.

A ARTE DE EXPOR

Por falar em Machado (e ainda falaremos muito), vi a exposição no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo (cidade que vem festejando a data e a da bossa nova como se deve), e achei que a cenografia e a abordagem cheia de humor quase fazem esquecer que o acervo, o conteúdo exibido, é tímido. Além disso, não entendo a necessidade de querer fazer de Machado um intelectual menos ''elitista''. O barato dele era com Beethoven, Shakespeare e Schopenhauer mesmo.

UMA LÁGRIMA

Num país onde há tanto medo de opinar, pois seria falta de humildade, Dercy Gonçalves se tornou um sucesso justamente por dizer aquilo que os outros gostariam de dizer e não têm coragem. A liga das senhoras católicas se queixava e se queixa dos palavrões, mas eles nada mais eram que apoios a improvisos quase sempre certeiros. Naquela telenovela em que era um anjo, roubava a cena dos jovens bonitinhos com seus cacos engraçados. Quando li seu livro de memórias - escrito por Maria Adelaide Amaral - e a entrevistei em 1994, fiquei impressionado com sua solidão e seu puritanismo. Era esse contraste que a fazia interessante. Como ela mesmo se disse, era uma vamp sem sexualidade, brejeira acima de tudo. Foi-se uma era.

DE LA MUSIQUE

Neste fim de semana terminou o Festival de Inverno de Campos do Jordão, mais uma vez com concerto do ótimo Kurt Masur. Já vi programações mais recheadas de grandes nomes, mas os que lá estiveram não fizeram feio. No fim de semana em que fui, curti o duo do violinista Glenn Dicterow (spalla da Filarmônica de Nova York) com o pianista Richard Bishop; uma apresentação de poemas musicados com a cantora Rosana Lamosa, o violoncelista Antonio Meneses, a pianista Fany Solter e o violinista Daniel Guedes, em que se destacou o ciclo de Aleksandr Blok musicado por Shostakovich; e a Orquestra Sinfônica Brasileira, que melhora a cada ano graças a Roberto Minczuk, tocando Bernstein, Liszt e o Dom Quixote de Richard Strauss, em que o cello de Meneses chorou sua morte com a pungência precisa que só os grandes intérpretes atingem.

POR QUE NÃO ME UFANO

Os tucanos comemoraram 20 anos e quase ninguém notou, principalmente se compararmos à atenção voltada aos 20 anos do PT em 2000. Uma razão é simples: o PT sempre pareceu ser um partido político no sentido tradicional do termo, representante de uma parcela importante da sociedade (mistura de sindicalistas, professores públicos e outros setores), ao passo que o PSDB era mais um colegiado de grandes nomes saídos do PMDB, quase todos intelectuais, quase todos paulistas. A outra razão é mais danosa: os descalabros do governo Lula, em vez de favorecer a pretensa oposição tucana, só fizeram mais estrago em sua imagem. E isso não apenas porque Lula sempre abusou das comparações, mas sobretudo porque o público detectou em casos como o do mensalão e agora o de Daniel Dantas o timbre do governo anterior.

O governo FHC fez duas coisas cujos resultados positivos são claros, agora mais do que nunca, e que Lula jamais teria feito se eleito antes (ele mesmo, de resto, reconhece que foi bom para o Brasil que não tenha sido): a estabilidade monetária e a privatização de algumas estatais. O problema é que ambas tiveram resultados negativos também. Como Lula seguiu a política econômica do antecessor, continuamos à mercê dos juros mais altos do planeta, elevados nesta semana para 13% ao ano (ou seja, 130% no seu cheque especial e cartão de crédito, minha cara classe média); e a privatização foi associada ao velho costume nacional de beneficiar os amigos do rei, como vemos nos casos atuais da Varig e da Brasil Telecom.

É por isso que não entendo que tanta gente boa sonhe com uma aliança entre PT e PSDB, a qual por sinal já vem se dando em muitos municípios e em Minas Gerais. Seria a consagração da mediocridade de idéias ora vigente no Brasil.