quinta-feira, julho 31, 2008

DOHA As razões do fracasso Luiz Felipe Lampreia




O Globo
31/7/2008

O desfecho dramático de Genebra foi crônica de um impasse anunciado.
Em dezembro de 1993 concluiu-se a Rodada Uruguai, depois de anos de fracassos. Iniciado em Punta Del Este em 1986, esse conjunto de negociações era muito mais ambicioso do que o atual, pois compreendia, além da liberalização do comércio de mercadorias, a criação de mecanismos regulatórios do comércio de serviços, dos investimentos internacionais e sobretudo de um mecanismo para solucionar controvérsias sobre a aplicação das regras e normas daquilo que se buscava criar: a OMC. Tive a honra de ser o negociador principal do Brasil nessa fase conclusiva sucedendo a grandes embaixadores, como Georges Maciel, Rúbens Ricupero e Celso Amorim. Nessa etapa final da Rodada Uruguai, a agricultura mal chegou a ser objeto de negociações, pois as grandes potências do comércio internacional já se haviam decidido por normas que apenas faziam ajustes mínimos no protecionismo praticado em todo o Primeiro Mundo e jogavam para o futuro a retomada do assunto. Os resultados foram, mesmo assim, importantes para a grande maioria das nações que viu o comércio internacional florescer e gerar riqueza em todo o mundo. O Brasil também se beneficiou deles, exceção feita à agricultura. Mas esse período não é o objeto desta análise, trata-se apenas de uma referência.

Vejamos o quadro em 2008 e examinemos as razões do fracasso.

A questão da agricultura foi, sem dúvida, a primeira causa do fracasso da Rodada Doha. Mesmo que hoje a parcela da força de trabalho que se encontra nas zonas rurais não exceda 3% em todo o Primeiro Mundo, o poder de fogo do lobby agrícola é assombroso seja em Washington, Bruxelas, Paris, Berlim, Tóquio ou Berna. Os Estados Unidos estão com o Congresso mais protecionista dos últimos 60 anos. Na Europa, o presidente Sarkozi superou até o rei do protecionismo agrícola - seu antecessor Chirac -, ameaçando abertamente tirar o tapete do comissário Mandelson, que representava a União Européia na OMC. Não creio que houvesse chances mínimas de aprovação nos parlamentos nacionais - onde os interesses setoriais estão entrincheirados - de reduções sensíveis no protecionismo agrícola.

Em segundo lugar, os países mais ricos já obtiveram no passado tudo que realmente desejavam: reduções tarifárias enormes entre si, disciplinas no comércio de serviços, na proteção da propriedade intelectual e um mínimo de normas sobre investimentos. Adicionalmente, haviam obtido resultados muito importantes nos compromissos assumidos quando da adesão de diversos países à OMC, em especial a China.

A China considera hoje que já fez todas as concessões ao seu alcance político e econômico e não tinha portanto maior interesse numa rodada como a atual, até porque seu comércio exportador é florescente e dinâmico com as regras atuais.

Em quarto lugar, tanto a Índia como a China estão longe de ter modernizado globalmente seus setores agrícolas e, portanto, consideram política e economicamente explosivo um deslocamento de suas já paupérrimas populações rurais pela competição com produtos oriundos de agriculturas eficientes e modernas. Seus líderes receiam tanto que a população agrícola se insurja contra uma abertura dos mercados que não hesitaram em bloquear o processo em Genebra.

Eis aí quatro macrocircunstâncias políticas que inviabilizaram o acordo. Elas são as mesmas, com alguns ajustes, que desde 1996 impedem o êxito de uma negociação que começou sendo chamada de Rodada do Milênio e evoluiu para o nome atual de Doha.

Assim, embora o Brasil tenha desempenhado um papel relevante, maior ainda do que no passado, não tinha peso suficiente para superar as grandes inércias acima apontadas. Mesmo a suposta segurança resultante da unidade do Grupo dos 20 (que acabou fragmentado) revelou-se uma decepção. Malgrado tudo isso, os formuladores de nossa política comercial colocaram todas as fichas no êxito da Rodada Doha. O resultado final foi que nosso país ficou de mãos vazias.

LUIZ FELIPE LAMPREIA foi ministro das Relações Exteriores (1995 a 2001).