domingo, janeiro 27, 2008

DANIEL PISA

A amadora arte de viajar


Consta que o termo ''''turismo'''' se popularizou a partir das viagens do poeta inglês lorde Byron há quase 200 anos, quando ele era um jovem parlamentar, estava enjoado de Londres e decidiu fazer ''''tours'''' pelo Velho Continente. Foi para Portugal, Espanha, Malta, se apaixonou por mulheres e homens, seguiu para Grécia e Albânia; decidiu passar mais tempo na Grécia e conheceu a Turquia também. Nesse período, de 1808 a 1811, escreveu poemas como Childe Harold que definiram o movimento romântico, por seu misto de melancolia e ilusão, por sua crítica aos desdobramentos da civilização e sua entrega à sensualidade e tolerância que via no Mediterrâneo.

Tudo que fez depois foi marcado por essa peregrinação solar. Ele ainda casaria duas vezes, se envolveria com Shelley, moraria um tempo em Veneza. Mas sua busca era por aquela sensação de idílio juvenil que jamais seria recuperada, mesmo no período em que, morando na Toscana, embebido em sua vida italiana, escreveu Don Juan. Tanto que, mais tarde, de volta a Londres, decidiu defender a causa grega contra os turcos e foi participar da invasão da fortaleza de Lepanto, onde se feriu gravemente. Bonito e epiléptico, acabou morrendo na Grécia, como herói nacional, com apenas 36 anos. Os turistas não sabem, mas a sombra de Byron paira acima de todos os 840 milhões de deslocamentos feitos a cada ano - um número que não pára de crescer.

''''Turismo é coisa de gentinha'''', escreveu Millôr Fernandes, provavelmente depois de se deparar com uma dessas hordas de americanos ou japoneses ou brasileiros com máquinas fotográficas, sacolas e um permanente olhar de espanto, como que surpreendidos e ameaçados pela variedade e complexidade do mundo. Mas o problema não é só esse turismo fast-food, essas viagens e excursões que parecem feitas para dizer que foram feitas - para contar aos íntimos, na volta, que você andou de gôndola ou subiu na Estátua da Liberdade, mesmo que tenha ficado meros dois dias em Veneza e confundido Nova York com Miami. Por trás de tudo isso há o espectro do romantismo, a idéia de que estar nesses lugares fará de você outra pessoa, a expectativa de que mudanças se dão magicamente como Byron em seu ''''santuário''''.

Por mais que queiram escapar ao lar, resta uma vontade de voltar rápido a ele, por isso o turista parece sempre tenso e ansioso. É como se toda rotina precisasse dessas fugas e refúgios para depois se fortalecer ainda mais. Nesse jogo de compensação, quem fica de fora é exatamente o conhecimento, a imersão mais lenta porém mais duradoura num ambiente estranho que, muitas vezes, pode até parecer estranhamente familiar. Acho curioso que as pessoas viajem para os lugares com nada além de algumas informações genéricas ou utilitárias que qualquer guia de bolso ou matéria de jornal traz. E que, uma vez ali, não façam pelo menos duas coisas fundamentais: ler a imprensa local, para não dizer a literatura; e andar a esmo, flanar, como a chutar pedrinhas pelas ruas. (Todo bom viajante é um chutador de pedrinhas imaginárias.)

Ler e caminhar, ambos sem muita ''''objetividade'''', fazem a diferença entre o bom e o mau turista. É com olhos livres e sapatos gastos que se faz uma viagem marcante. Não basta visitar os lugares manjados e comer os pratos típicos; é preciso estar aberto ao novo, correr os riscos, ter a paciência de não sair catalogando o que vê como ''''maravilhoso'''' ou ''''decepcionante'''' e nada mais. Outra coisa: não se visitam países, mas cidades e regiões; o mundo não cabe num roteiro de ''''lugares para conhecer antes de morrer''''. Também não vejo sentido em não alternar o estilo de viagem, das mais sofisticadas às mais rústicas, das mais próximas às mais distantes, das mais breves às mais longas. Certa hierarquia é necessária, mas os acasos - viagens para países que não eram prioridade, mudanças de rotas decididas no último instante - devem sempre ser bem-vindos, porque o inesperado é o ingrediente mais importante de qualquer viagem. Agora, voltar a um lugar que se conhece é essencial, como reler um livro que nos absorveu.

Comentei outro dia que a literatura de viagem me fascina, não apenas a antiga, mas sobretudo a moderna. Os franceses no século 19, como Flaubert, e os anglo-americanos no século 20, como Henry James, escreveram relatos admiráveis e reveladores. As Voyages de Flaubert saíram recentemente na França numa edição de um só volume, e li há pouco os Collected Travel Writings de James na coleção Library of America. Não sei por qual motivo esses textos não são traduzidos no Brasil, para não falar de nomes menos clássicos como Jan Morris e Peter Matthiesen. Além disso, são raros os escritores brasileiros - com exceção de algumas coisas de Mario de Andrade, Manuel Bandeira, Graciliano Ramos e Erico Veríssimo - que fazem narrativas de viagens, certamente não por falta de lugares aonde ir (aqui ou não). Talvez seja por ser gênero difícil, que mescla impressão subjetiva e observação direta. Mas que, quando bem feito, pode ser inesquecível.

Além das informações e meditações, esses livros podem ajudar a entender o espírito do que digo aqui. James descreve sua visita a Chartres: ''''Passei muito tempo observando esse monumento. Dei voltas ao seu redor, como a mosca ao redor da vela; me afastei e me reaproximei; escolhi 20 diferentes pontos de vista; olhei para ele em diferentes horas do dia, e a vi tanto ao luar como à luz do sol. Conquistei, numa palavra, certo senso de familiaridade com ele; e, no entanto, não espero dar nenhum relato coerente a seu respeito.'''' É por aí. Turistas somos todos; estaremos sempre numa cidade que não é nossa como um filósofo diante do cosmos, tateando entre a matéria escura.

Como em todos nós há alguém que se emociona ao escutar My Way ou Carinhoso pela primeira vez (vai, confessa), há também um homúnculo de bermuda comprando um souvenir qualquer. Se viajar é uma arte, como disse Alain de Botton, somos todos amadores nela. O bom de viajar não é nem ir nem voltar, é poder ir. É saber que se é livre para escolher entre tantas alternativas, mesmo que se escolha mal ou se prefira ''''viajar à roda do quarto'''', feito o outro. O único pecado que um viajante pode cometer é ficar parado.

DE LA MUSIQUE

Jacqueline Du Pré era uma inglesa simples e sorridente, quase ingênua, e ao mesmo tempo uma mulher de personalidade, de presença impossível de ignorar, que colocava o violoncelo entre as pernas e o tocava como se um complemento orgânico de seu corpanzil. Todos os depoimentos colhidos no DVD um tanto hiperbólico que leva seu nome, dirigido por Christopher Nupen, formam esse consenso. Vêm de músicos como Daniel Barenboim, Vladimir Ashkenazy, Pinchas Zukerman e Itzhak Perlman, com quem ela gravou uma bela versão de A Truta de Schubert. Jacqueline não teve muito tempo de carreira, atingida por doença aos 28 anos, e a interpretação que a tornou célebre é a do concerto de Elgar, cuja mescla de tristeza e força também a traduzia. Mesmo assim, enfrentou os grandes e deixou uma técnica única, de grande concentração e naturalidade simultâneas.

MINICONTO

Cicinho não saía dos chats, orkuts e todos os sites de relacionamento de que pudesse participar. E tinha tempo para isso: tardes sem escola, madrugadas sem a voz da mãe para advertir ''''Largue esse computador, menino!'''', fins de semana. Aos domingos escutava transmissões de futebol pela internet e participava do bate-papo com a rádio antes, durante e depois de cada partida. Sua página no orkut tinha mais ''''amigos'''' do que qualquer outra. Nunca ninguém tinha praticado tanto a arte da interatividade. Um belo dia, Cicinho, num raro passeio pela rua, viu numa vitrine de loja de lingerie, de relance, uma manequim; parou, observou mais alguns instantes e pensou: ''''Como eles estão ficando bons nesse negócio!'''' O corpo era perfeito, o rosto também, até o cabelo parecia real. E o tecido transparente sobre os seios de tamanho ideal! Foi amor à primeira vista. Cicinho desconfiou, então, que tinha um problema. A partir daquele dia, decidiu que jamais olharia para uma vitrine de novo.

POR QUE NÃO ME UFANO

Por falar em Mário de Andrade, e já que anteontem foi feriado de São Paulo, sua obra começa a ser toda relançada pela editora Agir. Voltarei ao assunto, mas por ora recomendo as crônicas que nunca havia lido do livro Os Filhos da Candinha, com textos dos anos 20 e 30 que ele reuniu e revisou em 1942. São Paulo não teve nem tem cronistas como o Rio, mas Mário é seguramente uma das exceções relativas. Gostei e me identifiquei com a crônica Abril, mês que ele chama de ''''o grande mês da natureza da cidade'''', com ''''manhãs arrebitadamente frias, cheias de vontade de trabalhar audacioso'''' e ''''noites de meia-estação, macias, cordatas que nem flanela''''. Outras de primeira: O Culto das Estátuas, Na Sombra do Erro (em que tira sarro dos que levam a sério erros como trocar ''''Caldas Barbosa'''' por ''''Sousa Caldas''''), Largo da Concórdia e Tacacá com Tucupi. Mário não reconheceria sua São Paulo e seu Brasil hoje. Os abris já não são os mesmos também, mas ainda resistem.

E-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br Site: www.danielpiza.com.br