sábado, janeiro 26, 2008

A CIA e a cultura durante a Guerra Fria

A CIA pagou a tinta

A história das campanhas culturais da
agência americana revela que os espiões
foram amigos do modernismo


Jerônimo Teixeira

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Exclusivo on-line
Trecho do livro

"Toda arte moderna é de cunho comunista", acusava o deputado republicano George Dondero em um discurso no Congresso, nos anos 50. Seu inimigo imediato era o expressionismo abstrato, movimento artístico de Nova York que então vivia seu auge. Muitos dos pintores boêmios do grupo – inclusive Jackson Pollock, o expoente do movimento – tiveram seus flertes com a esquerda. Mesmo com fama de serem "comunas", os expressionistas abstratos foram promovidos na Europa pela agência de espionagem americana, a CIA – que, nas primeiras décadas da Guerra Fria, também financiou secretamente congressos, concertos, revistas literárias, filmes e até festas chiques em Paris. A história desse esforço de propaganda cultural está muito bem narrada em Quem Pagou a Conta? (tradução de Vera Ribeiro; Record; 560 páginas; 68 reais), da jornalista inglesa Frances Stonor Saunders.

A CIA é associada ao serviço sujo do "imperialismo" americano. Não se imaginam agentes secretos programando vernissages. No entanto, a agência esteve envolvida na promoção cultural desde seu surgimento, em 1947. Seus primeiros diretores e agentes eram na maioria egressos de famílias ricas e educados em universidades tradicionais como Harvard. Professavam uma crença sincera na democracia americana, mas também eram elitistas – daí o gosto pela alta cultura. O objetivo inicial foi reverter a crescente influência soviética junto à intelectualidade européia. O principal veículo da propaganda cultural foi o Congresso pela Liberdade Cultural, com sede em Paris, que promovia eventos variados e financiava revistas como a inglesa Encounter, dirigida pelo poeta de esquerda Stephen Spender. Ao mesmo tempo em que combatia o comunismo, a agência desejava demolir o preconceito europeu segundo o qual os americanos eram um povo rico, mas sem cultura. A divulgação do expressionismo abstrato teve esse sentido: ali estava uma vanguarda genuinamente americana. E, de fato, Pollock e sua turma só poderiam prosperar em uma sociedade na qual os artistas não são submetidos ao cabresto do estado. O abstracionismo foi uma resposta ao "realismo socialista" oficialmente promovido pela União Soviética, com seu desfile kitsch de operários, agricultores e soldados.

Como qualquer órgão governamental que intervém na cultura, a CIA cedeu à tentação dirigista: nos anos 50, financiou adaptações de romances de George Orwell – o desenho animado A Revolução dos Bichos e o filme 1984 – e ordenou mudanças no fim das duas produções, para deixar a mensagem política mais clara. De modo geral, porém, as ações da CIA foram bem liberais. O grande pecado desse programa cultural foi seu caráter sub-reptício. A propaganda é mais eficiente quando não parece propaganda, e por isso a CIA sempre escondeu suas investidas artísticas. Entre 1966 e 1967, quando elas foram reveladas na imprensa, muitos intelectuais que se beneficiaram dos generosos financiamentos da agência se declararam ultrajados por terem servido sem saber à máquina de propaganda do governo americano. Mas a sombra da suspeita pesou sobre vários deles – seria mesmo verdade que nunca souberam quem era o financiador secreto? Spender, o editor da Encounter, desatou a chorar em uma festa em Chicago quando os demais convidados duvidaram de sua ingenuidade (no mesmo evento, estavam outras personalidades que de um modo ou outro estiveram vinculadas ao Congresso pela Liberdade Cultural, como a filósofa alemã Hannah Arendt e o escritor americano Saul Bellow). "As contorções morais dos intelectuais são mais difíceis de aceitar do que o pragmatismo da CIA. Eles queriam preservar sua independência sem renunciar às diárias e às passagens de avião pagas por um braço oculto do governo americano", disse Frances a VEJA. A moral da história – ainda muito atual, aliás – diz respeito não tanto à CIA, mas à hipocrisia dos intelectuais: cabe a eles perguntar quem está pagando a conta.

A arte da Guerra Fria

Algumas das investidas artísticas da CIA no
seu esforço de propaganda contra o comunismo

AP

Fotos AFP
Jackson Pollock foi um dos pintores que tiveram a obra exposta na Europa em mostras patrocinadas pela CIA. Seu expressionismo abstrato era apresentado como uma expressão criativa do individualismo americano
Ex-comunista, o húngaro Arthur Koestler teve livros subsidiados pelo governo americano e foi um militante da Guerra Fria cultural. A CIA acabou afastando Koestler: seu anticomunismo era incendiário demais




A CIA financiou um desenho animado inglês baseado em A Revolução dos Bichos, de George Orwell. O final do livro foi modificado para tornar mais clara a mensagem anticomunista
O compositor russo Igor Stravinsky foi um dos participantes de um festival cultural promovido pela CIA em Paris, em 1952. A União Soviética considerava sua música burguesa e degenerada