segunda-feira, setembro 24, 2007

Memória mutilada por Antonio Sepulveda

JB

Oscar Wilde dizia conhecer apenas dois tipos de livros: os bem escritos e os mal escritos. O "Direito à Memória e à Verdade", uma obra oficial do governo petista, elaborada pelos aspones da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, preenche todos os requisitos de um livro mal escrito, com a agravante de conter um vício irremissível: a parcialidade, que resulta sempre em mutilação de fatos históricos. Não há motivo para surpresa. Afinal de contas, o que se poderia esperar de uma récua sectária e ressentida?

Foram muitas as reações, tanto contrárias quanto favoráveis. A que mais chama atenção, pela sensatez do argumento, é sem dúvida a do meu amigo Marco Antonio Bompet, um intelectual que há décadas se ocupa de profundas pesquisas históricas, uma atividade que o fascina e o ajuda a conviver com a bestialidade vigente. Ele conseguiu esgotar o assunto em carta à colunista Miriam Leitão. A conhecida jornalista, em artigo intitulado “Força Relativa”, incorreu em erro grosseiro de interpretação.

Bompet contesta o entendimento de que as Forças Armadas negam a ocorrência de crimes no período de exceção. Nada disso transparece na nota do Exército; por conseguinte, ao fazer tal afirmação, a articulista mutila o fato.

Não apenas isso. Meu amigo lembra com propriedade que a verdade é mais complexa do que a leviana versão maniqueísta de um governo que apóia descaradamente os terroristas, como se estes fossem cândidos congregados marianos, comparados aos monstruosos militares. Sabemos que não é bem assim que a banda toca. Estamos hoje a testemunhar que as carreiras de alguns desses comunistas da luta armada ainda se encontram em andamento, embora em franca decadência. Eram assassinos, seqüestradores e assaltantes de banco; e hoje não passam de reles ladrões do dinheiro público. O livro, porém, os apresenta como vítimas, um crime doloso de parcialismo explícito contra a legitimidade da história documental.

Miriam Leitão atribui toda a iniciativa da insurgência de 1964 aos militares. Facciosamente, deixa de fora os demais segmentos sociais envolvidos; a própria imprensa, inclusive. Bompet considera esse tipo de procedimento intelectual e moralmente desonesto. Qualquer historiador bem-intencionado não despreza, por exemplo, o ponto de vista de Dona Maria I, a Louca, ao analisar a Inconfidência Mineira. Assim se faz a boa ciência histórica. Daí, pontifica Bompet, induzimos a pertinência da nota de protesto do Exército.

Bompet vai mais longe. Sustenta que a mal-aventurada Lei de Anistia beneficia os criminosos de ambos os lados, sem qualquer vantagem para a sociedade. Resulta que torturadores circulam livremente, criminosos ocupam importantes cargos públicos e auferem polpudos proventos que o cinismo oficial batizou de “caráter indenizatório".

Pois é. Bompet tem razão. Os assassinos que, entre outras monstruosidades, chacinaram inocentes no Aeroporto dos Guararapes não são denunciados pelo livro infame. Os criminosos de todos os matizes deveriam ter sido julgados aos olhos da nação. Se tortura é crime imprescritível, também o terrorismo deveria sê-lo. Se as tropas federais executaram guerrilheiros no Araguaia, estes também fuzilaram o Capitão Chandler sem lhe dar qualquer chance de defesa, a queima-roupa, diante dos filhos e da esposa do oficial do Exército dos Estados Unidos. E qual foi o crime de Chandler aos olhos dessa geração de víboras? Exatamente este: era americano.

Bompet alerta para a multiplicidade de perspectivas da ciência histórica e ensina que a abordagem correta exige a análise isenta dos acontecimentos. Não se trata, portanto, de negar coisa alguma, mas de ressaltar que fatos históricos tratados intencionalmente por um viés excludente não fazem História, mas política suja disfarçada de História. O bom jornalismo deve contribuir para a autenticidade dos documentos sobre os quais se debruçarão as gerações futuras. Miriam nos dá um mau exemplo. Eis o cerne da questão.