sábado, março 31, 2007

Roberto Pompeu de Toledo


Um raio de luz,
mas... será?

O parecer do TSE contra deputados
vira-casacas é tão boa notícia que
recomenda cautela

Uma oportunidade de ouro para restituir um pouco de decência ao sistema político brasileiro foi aberta na semana passada pelo Tribunal Superior Eleitoral ao afirmar que o mandato eletivo pertence antes ao partido do que ao deputado federal, deputado estadual ou vereador. A conseqüência prática disso é que a figura tão contumaz, no Brasil, do vira-casaca que, mal empossado, se bandeia para outro partido deve ficar sem mandato, cabendo ao partido pelo qual foi eleito o direito de substituí-lo por um suplente. Se o leitor ou a leitora estão pensando que o cenário é bom demais para ser verdade, estão certos. Vitórias da decência são eventos com que não dá para contar, no Brasil de hoje. Em todo caso...

O TSE se pronunciou em resposta a uma consulta do PFL (ou Democratas, como esse partido quer agora ser chamado). Até a semana passada, 37 dos deputados federais eleitos em outubro haviam mudado de partido. O PFL e o PPS foram os que mais perderam quadros – oito cada um –, seguidos pelo PSDB, com sete. Os trânsfugas mudaram-se todos para agremiações governistas, em busca de... Bem, o (a) leitor(a) já sabe. O mesmo sistema do mensalão, embora talvez não um mensalão tão mensalão, tão palpável, tão líquido, tão cash, se é que nos estamos fazendo entender (claro que estamos), navegava a todo o vapor, sob as cúpulas complacentes do Congresso Nacional. Notícias do balcão de ofertas de cargos e de privilégios a deputados interessados davam o ar de sua graça diariamente na imprensa, sem que o governo se desse ao trabalho de desmentir nem os colunistas políticos de se escandalizar. O partido preferido pelos vira-casacas é o Republicano, novo nome do Partido Liberal, de mensaleiras tradições. Com seu guichê alegremente aberto às adesões, o PR, que nas urnas elegeu 25 deputados, na semana passada já somava 41.

O voto do ministro Cesar Asfor Rocha, relator da consulta ao TSE, é, além de consistente peça jurídica, uma homenagem à instituição do partido político, esse "protagonista da democracia representativa", cujo vínculo com o candidato lhe proporciona "o mais forte, se não o único, elemento de sua identidade política". O sistema proporcional, pelo qual são eleitos os deputados brasileiros, tem por objetivo fazer com que as correntes de opinião, tal qual consolidadas nos partidos, sejam contempladas no Parlamento com representações proporcionais à sua acolhida na população. Daí que compreender o mandato como "algo integrante do patrimônio privado de um indivíduo, de que ele possa dispor", signifique negar sua natureza, "cuja justificativa é a função representativa de servir, em vez de dele servir-se".

Imagine-se, numa comparação tosca, que o morador de um edifício passe procuração a outro para, na reunião do condomínio, votar pela ampliação da garagem, já que os dois concordam com a medida. O procurador vai à reunião, mas lá troca de lado e usa a procuração para engrossar a votação contra a mudança. A coisa é simples assim. Espanta que a ilegalidade do troca-troca partidário não tenha sido argüida antes. Acresce, segundo a argumentação do ministro Asfor Rocha, que o que conta, para a distribuição das cadeiras na Câmara, assim como nas Assembléias e Câmaras Municipais, são os votos nos partidos. O sistema prevê que um "quociente eleitoral" será apurado da divisão do total dos votos válidos (isto é, excluídos os brancos e os nulos) pelo número de cadeiras em jogo. A cada partido caberá bancada igual a seu total de votos dividido pelo quociente eleitoral. Na esmagadora maioria, os deputados se elegem com votos abaixo do quociente eleitoral. São tonificados pelos votos dados aos companheiros de partido e pelos votos na legenda. Nas contas de Asfor Rocha, só 31, dos atuais 513 deputados federais, atingiram ou ultrapassaram, com seus próprios votos, o quociente eleitoral.

O voto do relator foi acompanhado por cinco outros ministros do TSE. Só um votou contra. O Supremo Tribunal Federal, no caso mais do que provável de vir a ser acionado, tenderia, segundo se entendia na semana passada, a confirmar o TSE. Contra tal ameaça a seus interesses, as forças pró-vira-casacas cogitavam em "provocar legislação nova", como disse um de seus comandantes, o presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia. Não será fácil. A argumentação do ministro Asfor Rocha é toda assentada na Constituição. A ser mantida pelo Supremo, não poderia ser contrariada por legislação infraconstitucional. Restaria a opção de uma emenda constitucional. Mas, além da necessária maioria de três quintos, como explicitar, na Constituição, que o deputado está autorizado a trocar de legenda sempre que lhe aprouver?

O leitor e a leitora estão felizes em ver como parece bem amarrada a ofensiva contra os vira-casacas? Não fiquem. Voltemos à nota de cautela anunciada no primeiro parágrafo. Vida longa é assegurada, no Brasil, aos patronos da indecência. Se é o caso de apostar, nunca é recomendável gastar muita ficha na suposição de que eles serão derrotados.