sábado, outubro 28, 2006

Eleitores dizem por que votam em Lula ou em Alckmin

Entre o azul e o vermelho

A tarefa do novo presidente será
diminuir o fosso que separa o
Brasil moderno do Brasil arcaico


Marcelo Carneiro, Camila Pereira e Rafael Corrêa

Daqui a pouco mais de dois meses, o Brasil assistirá à posse do sétimo presidente da República desde o fim do regime militar, em 1985. Nesse período, o país modernizou suas leis, livrou-se de parte do peso do Estado, domou a inflação, criou mecanismos para impedir a gastança irresponsável de governantes e tornou-se líder mundial de exportações em setores como agropecuária e mineração. Poderia ter ido muito além – não tivesse uma bola de ferro atada aos pés. O Brasil que busca a riqueza e o crescimento, habitado por famílias que desejam preparar seus filhos para um mundo mais complexo e dar a eles uma educação livre de ranços ideológicos, encontra-se encapsulado por um outro Brasil: um país arcaico, clientelista, resignado às práticas de corrupção e habitado por uma população que, premida pela miséria, tem como única perspectiva de vida usufruir os benefícios imediatos proporcionados por projetos assistencialistas. É o Brasil em que vicejam o patrimonialismo, o corporativismo, o populismo e outras velhas práticas de efeito paralisante.

O presidente eleito tem a tarefa urgente de unir o país em torno de objetivos que permitam vencer a pobreza não só material como de mentalidade. A história das nações desenvolvidas ensina que os dois aspectos estão indissociavelmente ligados. É preciso convencer – para usar um verbo caro a Lula – os brasileiros de que a construção de uma nação justa e moderna passa necessariamente pelo enxugamento do Estado, pelo investimento pesado em educação de base e pela constatação de que não existe governo capaz de salvar a pátria, pelo simples fato de que ele não produz riqueza. Quem o faz é a sociedade. A campanha presidencial, nesse sentido, não poderia ter sido mais decepcionante. Ambos os candidatos lançaram mão de um discurso que soa como música aos defensores do velho Brasil. Lula dedicou-se a "acusar" seu adversário, Geraldo Alckmin, de, uma vez no poder, querer iniciar um processo de privatização que resultaria na venda de empresas públicas como a Petrobras e o Banco do Brasil. O petista declarou, por exemplo, que, se estivesse ocupando a Presidência em 1997, não teria permitido a venda da Vale do Rio Doce, então um dos maiores símbolos do gigantismo estatal. Diante das bravatas estatizantes do presidente, a reação de Alckmin foi desastrosa. Intimidado, o tucano chegou a fantasiar-se de garoto-propaganda de estatais para negar que pretendesse privatizar empresas do governo. Triste papel. Alckmin perdeu a oportunidade de lembrar o país do avanço que representaram os processos de privatização nas áreas de telefonia, siderurgia e aviação conduzidos por Fernando Henrique Cardoso. Em relação à venda da Vale do Rio Doce, tampouco faltariam ao tucano argumentos para contrapor aos de Lula. Se quisesse, o ex-governador poderia ter lançado mão dos números apresentados pela presidente da companhia na fase pós-privatização, Maria Silvia Bastos Marques, em artigo publicado, na semana passada, nos jornais O Globo e O Estado de S. Paulo. Nele, a executiva apontou, de forma translúcida, quais foram os ganhos concretos que o Brasil obteve a partir do desmonte do mamute estatal que foi a Vale .


Vidal Cavalcante/AE
Sala de aula do Ibmec, faculdade privada de São Paulo, e classe de escola primária no interior do Pará (abaixo): choque de realidade
Caio Guatelli/Folha Imagem

Analisado à luz dos números, o Brasil é uma nação emergente. Mas o que se vê na realidade são dois países bastante diferentes. No Brasil moderno, mais de 90% das casas têm televisão e geladeira. No Brasil arcaico, três em cada dez casas não dispõem nem sequer de saneamento básico. No Brasil moderno, funciona o mais bem-sucedido programa de combate à aids do mundo. No Brasil arcaico, morrem 27 crianças de cada 1.000 nascidas vivas – um índice pior do que o de países como Equador e Albânia. Os critérios para eleger um governante também divergem nos dois Brasis. "Nos grotões e nas periferias pobres das grandes cidades, o voto está fortemente condicionado às alianças que os candidatos firmam com lideranças regionais e à avaliação imediatista que o eleitor faz dos benefícios que poderá receber com seu voto", diz o cientista político Cesar Romero Jacob. Prova disso é o impacto do programa Bolsa Família na votação que Lula obteve no primeiro turno. Do mês de junho para julho, início oficial da campanha eleitoral, o governo aumentou os gastos com o programa em 60%. O resultado foi que, no Nordeste, a região mais beneficiada pelo programa, Lula venceu em nada menos do que 93% dos municípios , de acordo com estudo feito pelos pesquisadores José Afonso Mazzon e Wagner Kamakura. Um passo decisivo para modernizar os programas sociais é justamente blindá-los contra a demagogia dos governos. O México, para ficar num modelo próximo, criou uma comissão independente do governo para gerenciar e fiscalizar programas sociais semelhantes ao Bolsa Família, de forma a evitar que sejam interrompidos ou utilizados de forma eleitoreira. "É uma experiência que poderia inspirar o Brasil", afirma o economista Marcelo Neri. Não que os eleitores de Alckmin, concentrados nas regiões Sul e Centro-Oeste, não tenham levado em conta o próprio bolso na hora de votar. Muitos dos votos que Alckmin recebeu foram fruto da insatisfação dos eleitores com a crise na agroindústria. Tanto assim que as regiões em que ele teve mais votos foram Sul e Centro-Oeste, as mais afetadas. De forma geral, no entanto, afirmam estudiosos, eleitores dos grandes centros tendem a escolher seu candidato levando em conta aspectos que não necessariamente tenham reflexos imediatos em sua vida. Diz Jacob: "Nesse segmento, a população costuma estar mais atenta a temas como a corrupção ou o papel do Estado na economia".

Um dos principais perigos de governos adeptos de práticas antigas, como o populismo, é a ameaça recorrente de retrocesso em áreas cujos avanços pareciam definitivos. Na semana passada, o presidente Lula acenou com a possibilidade de o governo federal reabrir negociações com os estados endividados junto à União. Seria um tiro no peito da Lei de Responsabilidade Fiscal, uma das grandes conquistas do governo FHC. Em 1998, dois anos antes de ela ser promulgada, a soma das dívidas dos estados e municípios chegava a 2,8 bilhões de reais. No ano passado, esse número foi transformado em um resultado positivo de 17,5 bilhões de reais. O afrouxamento da lei, sinalizado por Lula às vésperas da votação de segundo turno, pode atender a interesses eleitorais imediatos do presidente, mas é um péssimo negócio para o Brasil. A volta da farra da gastança significaria, para o país, o retorno a uma era que não deixou saudade e que já se imaginava enterrada.


Werner Rudhart/Kino.com.br
Colheita de soja mecanizada em Mato Grosso e família de lavradores no Maranhão: a agroindústria empurra o país para a frente; o assistencialismo, para trás
Sebastião

A gestão populista do Orçamento da União é um descalabro que se repete a cada mandato, desde a retomada do regime democrático. Sob o pretexto de ajudar os mais pobres, os sucessivos governos concederam aumentos no salário mínimo superiores à inflação. Nos últimos doze anos, o mínimo foi reajustado em valores 95% maiores do que a inflação. Mas a parcela mais pobre da população não foi a mais beneficiada. Um estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada mostrou que, do gasto extra realizado para financiar esse aumento, apenas um terço chega às famílias pobres ou extremamente pobres. O custo para o Estado, em contrapartida, é enorme. Como dois em cada três aposentados recebem um salário mínimo, os gastos com a Previdência explodem e chegam a 12% do produto interno bruto. Só o oportunismo eleitoral e a cegueira ideológica explicam que o Brasil estoure suas contas dessa maneira e, para cobrir o déficit resultante, aumente ainda mais os impostos – medida que penaliza toda a sociedade.

Um país que se recusa a aderir à economia globalizada está condenado à pobreza e à insignificância. Infelizmente, o Brasil trilha esse caminho, em razão de uma diplomacia marcada pelo antiamericanismo e por um terceiro-mundismo que atende apenas à satisfação de quistos esquerdistas entranhados no atual governo e no Itamaraty. "Para este governo, em nome da ideologia partidária, é possível até contrariar os interesses do país", diz o filósofo Roberto Romano. Enquanto a diplomacia brasileira se recusa a encarar como uma possibilidade positiva a Área de Livre Comércio das Américas, que permitiria a entrada de um maior número de produtos nacionais em mercados cobiçados, como o americano e o canadense, os Estados Unidos tecem acordos bilaterais com outros países do continente – e o Brasil, assim, perde espaço e oportunidades. Quando será que vamos perceber que a diplomacia comercial é coisa séria demais para ficar apenas nas mãos de diplomatas? Abrir as fronteiras, e conseqüentemente os horizontes, é fundamental. Um levantamento da Heritage Foundation, que estabelece um ranking dos países com mais liberdade na economia, listou o Brasil em 81º lugar, na categoria das nações "menos livres". O Chile, que nas duas últimas décadas aumentou em 535% suas exportações para os Estados Unidos, é o único país latino-americano a integrar a lista dos "livres", em 14º lugar. Conclui o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso: "O risco para o Brasil é tornar-se irrelevante no plano da economia mundial, em razão desse fechamento, fruto de uma ideologia atrasada".

"Desencapsular" o Brasil que quer crescer e libertá-lo do Brasil arcaico não é uma tarefa fácil, mas urge dar os primeiros passos. É consenso entre os economistas que a modernidade só penetrará nos grotões, nas cidades minúsculas onde nem a eletricidade chega, por meio de um investimento maciço em educação. Isso está longe de ser um blablablá teórico, como demonstra o caso da Coréia do Sul. Em 1960, 35% de sua população era analfabeta e a renda per capita não passava de 900 dólares anuais. Em menos de quarenta anos, os dispêndios pesados em formação técnica e intelectual mudaram radicalmente esse cenário. Hoje, o analfabetismo foi erradicado e 82% dos jovens coreanos estão na universidade. Na economia, o país passou de patinho feio a gigante: a renda per capita aumentou dezenove vezes, passando para 17 900 dólares, e as exportações bateram a casa dos 270 bilhões de dólares anuais. A receita usada pela Coréia é, em tudo, diferente das políticas educacionais adotadas pelo Brasil nos últimos anos. Aqui, o investimento do governo federal nas universidades, por aluno, é onze vezes maior do que no ensino fundamental. Inverter essa equação é mexer em um vespeiro do corporativismo: reitores das universidades públicas resistem em abrir mão das verbas destinadas ao ensino superior, da mesma forma que rejeitam a abertura da educação ao investimento internacional. O projeto de reforma universitária em tramitação no Congresso prevê que apenas 30% do capital das universidades brasileiras possa ficar nas mãos de instituições estrangeiras. "Esse protecionismo está na contramão de tudo o que foi feito em países como Cingapura e Chile, onde a abertura ao mercado externo trouxe a competição, elevou a produtividade e criou uma revolução na educação", afirma o especialista Claudio de Moura Castro.

No domingo, o Brasil terá um presidente eleito. Mas os desafios do país são velhos conhecidos. O preço de não querer enfrentá-los será pago por todos os brasileiros – pertençam eles à parte arcaica ou ao pedaço moderno. Ao trabalho, portanto.














Fotos Alexandre Battibugli, Rafael Campos, Roberto Setton e Humberto Nicoline/Hoje em Dia/Agência Estado

Os motivos dos eleitores

VEJA esteve em oito estados para saber em quem os brasileiros votarão e por quê. As entrevistas sugerem que os eleitores de Lula e os de Alckmin usaram critérios distintos para decidir seu voto. Os que votam em Lula justificam a opção citando a queda do preço de alimentos da cesta básica, o emprego conquistado por um parente, os benefícios assistenciais promovidos pelo governo. Já os que apóiam Alckmin costumam apontar razões mais conjunturais. Falam da necessidade de reformas, de maior dinamismo no comércio exterior e do combate à corrupção. Noventa eleitores declaram as razões de sua escolha.