sábado, setembro 30, 2006

Tensão e dinheiro na chegada


Tensão e dinheiro na chegada

A poucas horas do primeiro turno, o partido
do presidente Lula tenta impedir na Justiça
a divulgação das imagens do dinheiro com
que petistas pretendiam comprar o dossiê
contra o tucano José Serra


Julia Duailibi e Renato Piccinin

Montagem sobre fotos de Marcelo Hernadez/AP, Carlo Wrede/AE, Konrad Stawicki/Reuters
De acordo com uma pesquisa do Instituto Vox Populi encerrada às 18 horas de sexta-feira, o presidente Lula mantém a dianteira na corrida presidencial, mas nas duas últimas semanas perdeu boa parte da vantagem que tinha sobre os outros candidatos. Em 15 de setembro, Lula tinha 17 pontos a mais do que a soma das intenções de voto de seus adversários. Agora, está apenas 4 pontos à frente

A poucas horas do primeiro turno da eleição presidencial, estilhaços da guerra que vem sendo travada na Polícia Federal desde o estouro do dossiêgate fizeram estremecer o comitê de campanha do presidente Lula. No dia seguinte ao massacre sofrido no debate da Rede Globo – ao qual o petista não compareceu, deixando adversários como Heloísa Helena à vontade para dizer que ele tinha a obrigação de "descer do seu trono de corrupção" –, Lula amargou o dissabor de ver divulgadas as imagens que seus subordinados no governo tão cuidadosamente haviam conseguido esconder por duas semanas: as das pilhas de dólares e reais com que petistas pretendiam comprar um falso dossiê com o intuito de incriminar o tucano José Serra. O PT ainda tentou evitar que se divulgassem as fotos. No início da noite de sexta-feira, entrou com pedido de liminar no Tribunal Superior Eleitoral para impedir que elas fossem reproduzidas por qualquer meio de comunicação. O pedido foi negado. As cédulas, totalizando 1,7 milhão de reais, foram apreendidas pela PF no último dia 15. Como é praxe nas operações da instituição, foram empilhadas e fotografadas, mas as imagens ainda não haviam sido divulgadas (como também é praxe na PF) por determinação do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, a quem a PF está subordinada.

A submissão de uma instituição que, nos últimos anos, havia conquistado uma imagem de autonomia e a maior popularidade de seus mais de sessenta anos de história irritou parte de seus integrantes a ponto de eles tornarem pública sua insatisfação. Na quarta-feira passada, nota assinada pela Federação Nacional dos Delegados de Polícia Federal acusava o governo de "usar a imagem" da PF e propunha autonomia "orçamentária e financeira" da instituição. Embora o pano de fundo da manifestação dos policiais sejam a velha discussão por reajuste salarial e a disputa por poder na cúpula da entidade, ela colocou no centro do debate, às vésperas da eleição, o uso político de mais um órgão público a favor dos interesses partidários e particulares do presidente Lula e de seus ministros.

Os reais e os dólares (à esq.) que estavam com os petistas presos e que foram entregues a eles por um assessor do candidato ao governo de São Paulo Aloizio Mercadante (abaixo). O PT tentou esconder as imagens por meio de liminar
Clayton de Souza/AE

Em reportagem publicada em sua última edição, VEJA já informava que, passada uma semana da prisão dos envolvidos no escândalo, a Polícia Federal não havia sequer entrado em contato com três bancos dos quais teriam sido sacados os reais usados na tentativa de compra do dossiê. Informou ainda que o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), órgão que fiscaliza as movimentações financeiras, também não havia fornecido dados sobre as investigações. Agora, está claro que nada disso ocorreu por acaso. Na semana passada, VEJA reconstituiu os passos da operação que revelou o dossiêgate e conversou com policiais que participaram dela. Descobriu que a denunciada "operação tartaruga" da PF foi mesmo uma "operação abafa".

Na madrugada do dia 15, a equipe de plantão da Superintendência da Polícia Federal em São Paulo recebeu de Mato Grosso um fax, confidencial, pedindo a identificação e a localização no hotel Ibis de "Valdebran Padilha, que poderá estar registrado como Waldebran Carlos, o qual, em tese, estaria hospedado no apartamento 475". O documento dizia que "o alvo Valdebran estaria guardando nas dependências do hotel, possivelmente no quarto 475, a quantia aproximada de 1 milhão de reais". Embora a Polícia Federal tenha descoberto a operação de compra do dossiê por meio de escutas telefônicas, estranhamente em momento algum o documento mencionava a existência de Gedimar Passos, o ex-agente da PF e integrante do PT que estava no quarto ao lado com o resto do dinheiro. Tudo indica que o ex-agente, que dedurou a participação no caso do segurança Freud Godoy, amigo de Lula, foi preso sem querer. A prisão de Gedimar, integrante da campanha de reeleição do presidente, causou tremores em Brasília. Primeiro, foi Zulmar Pimentel, o número 2 da PF, quem entrou em contato com a superintendência em São Paulo para se inteirar da situação. Depois, foi a vez de Paulo Lacerda, diretor do órgão e chefe de Pimentel. Por fim, o próprio ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, sem conseguir conter-se, telefonou para Geraldo José Araújo, superintendente da PF em São Paulo, para perguntar: "Isso respinga no presidente?".

Beto Barata/AE
Vedoin (à dir.): o empresário receberia o dinheiro em troca de um dossiê contra os tucanos

Os tropeções da Polícia Federal foram ocorrendo com rapidez inversamente proporcional à da investigação. A Polícia Federal foi a primeira a vir a público dizer que seria muito difícil rastrear a origem dos reais encontrados nos quartos 475 e 479 naquela sexta-feira. Afirmou que, desse milhão, apenas 25.000 reais tinham tarja com identificação. VEJA apurou que a maior parte dos reais estava, sim, identificada, a ponto de as tarjas lotarem as cestas de lixo dos quartos de Valdebran e Gedimar. A polícia, no entanto, coletou apenas cinco desses lacres para locar no inquérito como amostra. O resto fez o favor de jogar no lixo. Mas a "operação tartaruga" da Polícia Federal não parou por aí. Os 28 DVDs com imagens das câmeras do hotel foram disponibilizados pela gerência do Ibis na segunda-feira posterior às prisões. Mas a PF só teve interesse em buscá-los na quarta-feira. Mandar para a perícia, então... Só dois dias depois, quando foram enviados para o Instituto Nacional de Criminalística, em Brasília. Descobriu-se aí que Hamilton Lacerda, então coordenador de comunicação da campanha de Aloizio Mercadante, era o homem da mala, o que pagou pelo dossiê. Na sexta-feira passada, enquanto Lacerda prestava depoimento à polícia, veio a público a informação de que o ex-coordenador de comunicação da campanha de Mercadante ocupava também a função de assessor parlamentar do senador.

Oscar Cabral
Cadeira vazia: "Lula tinha a obrigação de descer do seu trono de corrupção", afirmou Heloísa Helena

A Polícia Federal também imprimiu marcha lenta ao pedir à Justiça Federal a quebra dos sigilos telefônico e bancário dos seis petistas envolvidos na operação do dossiê. O pedido foi enviado ao Judiciário apenas na segunda-feira, ou seja, dez dias depois de o trambique do pessoal do PT ter se tornado público. Com o mesmo ritmo, a PF também demorou os mesmos dez dias para fazer uma reunião com o Coaf, órgão ligado ao Ministério da Fazenda, para pedir ajuda no rastreamento de parte do dinheiro. No que parece inimaginável, só na quinta-feira passada o Banco Central foi acionado para informar quem comprou dólares do Banco Sofisa, instituição da qual saiu parte dos 248.000 dólares apreendidos no hotel Ibis. Na quinta-feira, a oposição foi a campo atacar a polícia do ministro Márcio Thomaz Bastos. "Eu suspeito que a PF tenha todas as informações e esteja postergando as investigações para depois das eleições", declarou o senador Tasso Jereissati, do PSDB do Ceará.

Roberto Jayme/AE
Tasso Jereissati: "A PF está atrasando o resultado das investigações para depois das eleições"

Em sua fase final, a campanha presidencial exibe um placar quase idêntico ao do dia em que começou. Em 29 de junho, a uma semana do início oficial da corrida presidencial, Lula tinha 46% das intenções de voto, Alckmin 29% e Heloísa Helena 6%, de acordo com pesquisa Datafolha. Na semana passada, transcorridos quase noventa dias de viagens, comícios e propaganda eleitoral, Lula e Heloísa Helena mostravam crescimentos compatíveis com a margem de erro de 3 pontos porcentuais da pesquisa (49% e 8%), e Alckmin aparecia com apenas 4 pontos a mais em relação ao que possuía na reta de largada – ou seja, 33% das intenções de voto. Se chama atenção a dificuldade de Alckmin e Heloísa Helena de sair do lugar, a resistência demonstrada pela candidatura Lula é um sinal dos tempos. Só nos últimos quarenta dias ela foi atingida por dois escândalos: além do dossiêgate, houve ainda o sumiço de parte das cartilhas da Secom. Antes disso, já havia sobrevivido a uma série de outros – mensalão, caixa dois e dólar na cueca incluídos. A enxurrada de revelações sobre corrupção que envolveu o governo Lula desde junho de 2005 arrastou nada menos do que quinze pessoas próximas ao presidente, incluindo três de seus homens fortes no governo (José Dirceu, Antonio Palocci e Luiz Gushiken, este último ainda no poder, mas rebaixado de posto); três altos dirigentes de seu partido (José Genoíno, Delúbio Soares e Silvio "Land Rover" Pereira); e três chefes de sua campanha à reeleição (Ricardo Berzoini, Osvaldo Bargas e Jorge Lorenzetti). Até sexta-feira passada, nada disso havia sido suficiente para abalar Lula.

Em comício realizado em São Bernardo do Campo, na quinta-feira, o presidente voltou a afirmar que será reeleito no primeiro turno. Ainda que isso ocorra, Lula terá um desafio muito maior pela frente do que vencer o tucano Geraldo Alckmin: o de evitar que um eventual segundo mandato seja, como foi o primeiro, manchado pela nódoa da corrupção – que, ao contrário do que parecem querer o presidente e seus assessores, não se apaga com liminares nem com operações abafa.