quinta-feira, junho 29, 2006

Carlos Heitor Cony - Os caçadores de rolinha Folha de S. Paulo


29/6/2006

Vejo, por cima dos telhados, a cruz. Aponta para o céu. Que que há lá
em cima para tanta coisa apontar assim? Ignoro o que esteja acima da
cruz. Sei o que está abaixo: a igreja, o altar iluminado, as velas,
os convidados, as flores, o órgão. E eu. Ainda não estou lá, mas é
como se lá estivesse, inarredável, desde o início dos séculos, eterno.
Na verdade, estou esperando sempre, esperando pela noiva, pelo resto,
pela vida. Esse que está indo é apenas um retardatário que vai
assistir ao espetáculo, apenas isso. Pois assistamos.
"Olha o carro do seu padrinho." A mãe aponta o Buick preto parado na
esquina. "Sim, todos estão na igreja. Só falta a gente. E Glorinha, é
claro." "Ela demorará muito?" "Não. Combinamos chegar quase juntos.
Se tudo der certo, quando eu e a senhora chegarmos ao altar, o carro
dela deverá estar encostando na porta. Tudo simétrico e perfeito,
como um relógio."
"Não zombe de seu sogro, filho. O fato de ele ter uma relojoaria na
cidade não o desmerece. Você é doutor e pobre. Ele é ignorante e
rico. Cada qual faz o que pode." "Pois estou fazendo o que posso.
Saltemos."
"E o pé?" "Até agora, tudo vai bem. É uma grande coisa casar, mãe.
Olha como tem gente. Parece um enterro."
Parado na porta, segurando uma espada, épico em seu uniforme branco,
um oficial da Marinha. Custo a reconhecê-lo. O pai fizera a lista de
todos os vizinhos dos últimos 25 anos. Ali está, capitão de qualquer-
coisa-do-mar, o Geraldinho dos matagais, que caçava rolinhas comigo.
Era um rito. Pegávamos uma bacia e miolo de pão, ficávamos lado a
lado, nos matagais. Geraldinho tinha de puxar um barbante para a
bacia cair e prender as rolinhas. Nunca acertava. Eu dizia: "Amanhã
tem mais".