sábado, maio 27, 2006

Delírio ideológico

EDITORIAL DE O GLOBO



A rusga com a Bolívia é reveladora do momento da América Latina — em que ressurge da História a tradicional corrente nacional populista — e ajuda nas análises sobre a diplomacia brasileira.

A excessiva benevolência até agora demonstrada pelo governo Lula com um ato hostil — a estatização na marra dos investimentos da Petrobras no país — indica que para o Planalto algo maior está em jogo.

Na visão do governo, trata-se da integração latino-americana, aposta na qual o presidente brasileiro deposita muitas fichas. De forma arriscada.

É indiscutível que interessa chegar a algum acordo com Evo Morales, pelo peso do gás boliviano no mercado brasileiro. Pois ainda levará algum tempo para o Brasil reduzir ou eliminar a dependência externa do combustível. Mas por uma questão de princípio, não se pode aceitar a simples expropriação de bens da Petrobras, por mais que haja no círculo próximo do presidente Lula quem pretenda conduzir a diplomacia por parâmetros meramente ideológicos e não pragmáticos e independentes, como é — ou era — da tradição do Itamaraty.

A integração continental é um projeto geopolítico estratégico a ser perseguido. Porém, deve-se saber a que custo. Num mundo em trânsito num ciclo de fortes tensões causadas pelo aumento do preço da energia, a América Latina tem um elemento precioso em torno do qual pode-se acelerar um projeto de integração regional: a disponibilidade de petróleo e gás. Nesse sentido, Bolívia e Venezuela cumprem papel de destaque no tabuleiro geopolítico.

A dificuldade, quase insuperável, será fazer coincidir as necessidades estratégicas de um país das dimensões do Brasil, de economia diversificada, dinâmica e já bastante interdependente com o exterior, com o projeto equivocado e inexeqüível de Hugo Chávez, aliado a Fidel Castro — os dois, até agora, tutores de Morales — de fechar parte da América Latina para o mundo.

Tudo embalado numa retórica terceiro-mundista da década de 60, já soterrada sob os escombros do Muro de Berlim.