domingo, abril 30, 2006

Culturobrás DANIELPIZA

Culturobrás

Sinopse

Uma das leituras mais interessantes da semana foi a pesquisa feita pela Universidade de Oxford em seis países sobre aposentadoria: Brasil, México, Estados Unidos, China, Índia e Reino Unido. O brasileiro é quem menos poupa e quem mais associa aposentadoria a tempo livre para descansar e ter vida sexual mais ativa. (Aqui caberia uma pergunta: será porque, ao contrário do que apregoa, sua vida sexual é insatisfatória? Mas este é tema para outro dia.) E o mais destoante: 52% dos entrevistados no Brasil dizem que é o governo que deve bancar a aposentadoria; na China são 34% e nos Estados Unidos, 16%. Em outras palavras, a maioria dos brasileiros quer se aposentar antes dos 60 anos para não fazer nada e às custas do governo. O futuro ideal é uma sinecura.

Essa cultura estatizante, que está sempre à espera das benesses do Estado-Mãe, é um grande fator de atraso do Brasil. Primeiro, porque impede reformas de verdade em sistemas como o previdenciário e o tributário. Temos visto na Europa - como nos protestos estudantis na França e na cisão política da Itália - a dificuldade gerada pela falta de dinamismo econômico num mundo novo de tecnologia e competição. Pois o Brasil, que gasta 10% do PIB em previdência (o dobro dos EUA), sofre dos males do Velho Mundo sem ser Velho Mundo. Ao mesmo tempo, vive a instabilidade social e financeira dos países em desenvolvimento, "emergentes". O segundo motivo é a série de valores distorcidos, a ética frouxa que cresce como capim em torno da noção de Estado como esteio.

Machado de Assis escreveu que o brasileiro tem "a bossa da ilegalidade", o gosto por driblar as regras em benefício próprio. Para muita gente, é legal ser ilegal. Isso pode ser explicado em parte pelo fato de que o Estado tem sido quase sempre ausente onde não deveria ser, como na péssima qualidade de saúde e educação; em outra parte, porque tem criado quase sempre um número excessivo e confuso de leis, que tolhem a liberdade civil e produtiva; ainda assim, não se explica tudo. Afinal, no México e na China tal contradição também ocorre, mas nem por isso seus habitantes anseiam tanto pelo seio estatal. No ambiente cultural brasileiro, mama logo se converte em mamata. Como digo há muito tempo, é esse - e não "socialismo" - o problema do PT, que critica as oligarquias e, na realidade, age igual a elas.

Não poderia ter havido melhor símbolo disso tudo que a imagem de Lula com as mãos sujas - de petróleo - na festa de "auto-suficiência" da Petrobras. A propaganda, para começo de conversa, é falsa. O Brasil não é auto-suficiente: a Petrobras continua a importar óleo leve; não tem como acompanhar um eventual ritmo maior de crescimento do PIB; e não consegue baixar os preços, sob desculpa de que são internacionalizados (desculpa que, por exemplo, não vale na Venezuela). Houve uso eleitoral do festejo, em que o diretor da estatal falou mais sobre o governo FHC do que sobre desafios da atualidade. Ninguém garante que, ao menos parcialmente privatizada, a Petrobras hoje não tivesse tido um ganho de competitividade como o da Vale e o da Embraer; além disso, ela foi, sim, beneficiada pela liberalização da distribuição no governo anterior, quando deu o salto de produção mais significativo. "Mais óleo, menos monopólio", pedia Monteiro Lobato, e até hoje continua a não ser ouvido.

O arquiinimigo de Lobato, Getúlio Vargas, é o maior ídolo do presidente Lula. Como se lê no livro recém-lançado de Boris Fausto sobre ele na coleção Perfis Brasileiros (Companhia das Letras) - ou, antes ainda, no livro Getúlio, Pai dos Pobres?, de Robert Levine -, vem dele a idéia de que o Estado é quem puxa e conduz o desenvolvimento, à frente do mercado. Seu fascismo suave (na forma, não para quem o sofreu na carne) tem antecedente no "despotismo açucarado" de Dom Pedro II (para usar a expressão de José Bonifácio), o que nenhum dos autores nota; mas marcou a mentalidade moderna do Brasil porque deu empuxo à industrialização nacional, assim como ao samba e ao futebol. Desde então não há governo neste país que não aumente a carga sobre os vagões da sociedade.

Tal cultura getulista é, para dar outro exemplo, o conceito tácito que rege movimentos como o protesto para que o governo encampe a Varig. Estando Lula impedido pelas circunstâncias do ano eleitoral, José Dirceu foi convocado para expressar essa idéia em verbo. Não importa que o setor de aviação esteja em transformação aguda, principalmente depois do 11/9, e que empresas como a Varig estejam despreparadas para uma gestão eficiente e limpa, com quantidade absurda de funcionários, pensões e desperdícios; o importante é salvá-la com dinheiro público - aquele que, sendo de todos, passa a ser de quem pegar primeiro, de quem for mais "esperto". Muitos espertos e poucos expertos, eis a fórmula da culturobrás que ainda manda no País.

CADERNOS DO CINEMA (1)

As seqüências com o esquilo e a noz em A Era do Gelo 2, especialmente a de abertura, são grandes momentos cômicos do cinema. Harold Lloyd, digamos, assinaria.

CADERNOS DO CINEMA (2)

Vi em DVD dois filmes que não tinha tido tempo de ver no cinema. Marcas da Violência, de David Cronenberg, demonstra mais uma vez a dificuldade de alguns cineastas de entrar em zonas sombrias sem ser esquemáticos; não se vai além da verificação de que o protagonista tem dupla personalidade sem nenhum conflito de ordem interior. O Mercador de Veneza, de Michael Radford, tenta ser um Shakespeare "light" e só se salva por alguns momentos de Al Pacino, especialmente no monólogo em que Shylock critica o anti-semitismo.

LÁGRIMAS

Para Muriel Spark, a ficcionista escocesa, cujas novelas combinam sofisticação e leveza de uma forma única, em que não se perde a noção trágica da vida. Meus livros preferidos são The Only Problem e Loitering with Intent.

Para Miguel Reale, criador da Teoria Tridimensional do Direito. Era muito idealista e conservador, mas ele sim - ao contrário desses professores de filosofia que como tais se intitulam - podia ser chamado de filósofo.

Para Guilherme de Brito, autor da letra musicada por Nelson Cavaquinho que diz: "Tire seu sorriso do caminho/ Que eu quero passar com a minha dor." Quem escreveu versos assim não deve mais nada aos semelhantes.

MEA CULPA

Quando citei Fiesp entre as obras de Paulo Mendes da Rocha, me referi ao trabalho que ele fez no térreo do edifício, para a Galeria do Sesi. Essa adaptação e a da Pinacoteca demonstram como respeitar as características de um espaço e ao mesmo tempo transformá-lo, unindo beleza e função.

RODAPÉ (1)

Tenho lido tantos livros sobre Stálin quanto Saddam Hussein lia - pelos motivos opostos, é claro. Ainda não terminei o de Simon Sebag Montefiore, um catatau de mais de 800 páginas, repleto de informações novas, beneficiado como foi pela abertura dos arquivos do regime soviético. Ninguém antes tinha mostrado com tantos detalhes a rotina do ditador, sua relação com a esposa e os filhos, a apropriação do patrimônio público para uso pessoal e principalmente as rodas com os companheiros, em que despachava vodcas adentro e expurgos afora. Mas ainda acho que a biografia escrita por Dmitri Volkogonov tem uma visão mais abrangente e incisiva da arquitetura do terror stalinista.

RODAPÉ (2)

Sobre Beckett, leio no Times de Londres que foi lançado o volume Beckett Remembering/ Remembering Beckett (Bloomsbury), com entrevistas dele e recordações sobre ele, e que sua irritação com os críticos que viam coisas demais em suas obras era enorme. Ele chamava isso de "herrdoktoring", a leitura academicista que lhe dava muito mais importância do que tinha; e comentou da seguinte forma uma montagem de Esperando Godot em 1971: "Eu só queria que eles parassem de me fazer dizer mais do que eu digo."

POR QUE NÃO ME UFANO

Os gastos do governo federal aumentaram 14,5% no primeiro trimestre deste ano eleitoral. Das despesas com o gabinete e as residências de Lula até as liberações de verbas e o custeio da máquina, passando pelos cartões de crédito do primeiro escalão e pelas criações de cargos e mais cargos, esse é um governo que só economiza nos investimentos importantes.

UM BRINDE

Faltei na semana passada porque nasceu meu filho, Bernardo, que teve a sorte de herdar os traços da mãe. Que seja forte como um urso e leve como o outono.