quinta-feira, março 30, 2006

MERVAL PEREIRA Técnico x político


O GLOBO

O relatório final da CPMI dos Correios protegeu claramente o presidente Lula, eximindo-o de culpa pelo mensalão, mas deixou nas entrelinhas diversas críticas à atuação do presidente no episódio e nos seus desdobramentos. O relator diz com todas as letras que mensalão e caixa dois são coisas distintas, desmontando a tese defendida pelo presidente, criada claramente pela astúcia do advogado criminalista que ocupa o Ministério da Justiça. Se não trouxe novidades, o relatório reavivou a memória de todos sobre o escândalo de corrupção patrocinado pelo Executivo com o objetivo de submeter a maioria do Congresso às suas vontades.

Se o presidente Lula até ontem continuava dizendo que o mensalão não existiu, a partir do relatório ele terá que admitir não apenas sua existência, como a participação ativa de ministros e de órgãos ligados ao Executivo na intrincada trama montada pelo PT para financiar apoios políticos ao governo na Câmara.

A boa vontade da CPMI com o presidente ficou patente também quando foi tratada a negociação da Telemar com a Gamecorp, empresa de vídeos e jogos eletrônicos do seu filho que, no entanto, não é citado nominalmente no relatório. O relator estranha a transação de R$ 5 milhões, e mais o pesado investimento da Telemar no apoio publicitário dos programas gerados pela empresa, mas não explica o porquê do estranhamento.

Ora, a única razão de a transação ter despertado tanta celeuma é o fato de o filho do presidente ser o proprietário, pois a Telemar, sendo uma empresa privada, pode fazer maus negócios com quem quer que seja, sem que o público em geral tenha nada com isso, a não ser os que têm ações da empresa.

O que se estranhou nesse caso específico foi que a empresa Gamecorp, sendo uma novata no setor, tenha tido um incentivo inusual, num mercado tão competitivo como o de tecnologia. Fica ridículo, portanto, o relatório oficial da CPMI citar um suposto escândalo envolvendo até mesmo o BNDES, que é sócio da Telemar, sem dar o nome do santo.

No mais, o indiciamento de políticos envolvidos no recebimento de vantagens para aderir ao governo, e de dois ex-ministros componentes do "núcleo duro" de poder original — José Dirceu e Luiz Gushiken — mostra o quanto a CPMI está convencida de que toda a trama nasceu nos gabinetes do Palácio do Planalto.

Dirceu está tentando reaver no Supremo seu mandato de deputado federal, cassado por ter sido o coordenador do mensalão, e Gushiken, sem as prerrogativas de ministro e isolado no Núcleo de Assuntos Estratégicos, distribuiu ontem um documento onde refuta as acusações de ter manipulado verbas publicitárias e fundos de pensão para nutrir de dinheiro o valerioduto.

Seus argumentos, na maioria técnicos, servirão para a defesa nos tribunais, mas não servem para a defesa em um julgamento político. Essa diferença entre as instâncias técnica e política foi muito bem analisada, aliás, pelo demissionário presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Nelson Jobim, que foi homenageado ontem pelo Senado.

Jobim, que deixa o Supremo dez anos antes da aposentadoria compulsória para retomar a vida política, culpou os políticos pela presença dos tribunais superiores nas disputas internas da Câmara e do Senado, especialmente no que se refere às CPIs.

Jobim, que tem sido acusado de tomar decisões que favorecem ao governo, se defendeu de maneira indireta lembrando que no Congresso as negociações são feitas visando ao interesse e à conveniência políticas, enquanto no Supremo o que norteia as decisões são a legalidade e a constitucionalidade.

Se os políticos não são capazes de resolver seus conflitos e os perdedores querem continuar a disputa política nos tribunais, têm que saber que estão abrindo mão de seu poder de negociação e se submetendo a critérios que nada têm de políticos, ressaltou.

Jobim disse que o Supremo, à medida que vem sendo instado a se pronunciar sobre quebra de sigilos ou direitos individuais, está na prática criando uma jurisprudência sobre como devem funcionar as CPIs, e sugeriu que o Congresso tomasse a iniciativa de fazer um documento com as principais normas para que as próximas CPIs possam funcionar mais a contento.

Recentemente, esse mesmo assunto foi tema de discussão no plenário do Supremo Tribunal Federal, ocasião em que o ministro César Peluzo defendera a edição, pelo próprio STF, de uma súmula para "cristalizar" o entendimento dos ministros sobre os procedimentos legais que devem seguir os pedidos de quebra de sigilo bancário, fiscal ou telefônico de um investigado.

Os ministros do Supremo atribuíram muitas das decisões juridicamente erradas das CPIs a um processo de "espetacularização" das investigações, sugerindo que a mistura de ano eleitoral com a transmissão pela televisão das sessões das CPIs levam a exageros dos políticos.


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Perguntada pelo senador Cesar Borges sobre recente coluna minha, a senadora Ideli Salvatti negou que tivesse feito comentário que dava a entender que o presidente Lula já sabia sobre o extrato do caseiro Francenildo Costa quando foi comunicado, em Santa Catarina, da notícia da revista "Época".

Ontem, ela me telefonou e reconheceu que dissera que "a expressão facial" do presidente foi como quem diz "Ah, eu sabia". Mas a senadora Ideli explicou, em nota oficial, que a exclamação que usou significava que o presidente "já desconfiava" que havia alguma coisa errada com os depósitos do caseiro, e não que ele sabia da quebra do sigilo.

Por essa versão, o presidente, que nunca sabe de nada do que acontece à sua volta, quando desconfia que sabe, está redondamente errado: desconfiou do "pobre" caseiro e confiou no "mais que irmão" Palocci. Deu no que deu.