sábado, fevereiro 25, 2006

JOÃO UBALDO RIBEIRO Traumas carnavalescos

O GLOBO


Tenho uma amiga que diz que todos os nossos problemas são por causa de traumas de infância. Estou inclinado a acreditar que é verdade, porque meus problemas com o carnaval só podem ser causados pelo trauma que passei em meu primeiro baile infantil, enfrentado quando eu morava em Aracaju. Fui fantasiado de pierrô: roupa de cetim azul, borlas cor-de-rosa no lugar dos botões, um chapéu cônico com uma outra borla no topo, duas rodelas de ruge na cara, batom e pó-de-arroz. Cheguei a suspeitar que minha mãe preferia que eu tivesse nascido menina e, se pudesse, me fantasiaria de colombina. O fato é que eu não queria entrar no baile e me transformei, para o resto da vida, num carnavalesco singular, pois gosto do carnaval na teoria e sou contra na prática.

Para não falar que, além disso, sofri diversos outros traumas, alguns dos quais já na adolescência ou mesmo depois de adulto, reforçando meu sentimento de anormalidade por não entrar na folia. Fiz de tudo para entrar, mas não deu certo. Já frangote, por exemplo, combinei um truque com um amigo que também padecia do mesmo mal, companheiro de infortúnio momesco e mulheresco. Naquele tempo dos bailes, quando o sujeito ia sem companhia feminina, entrava no salão e saía pulando, às vezes com uma toalhinha pendurada no pescoço para cheirar lança-perfume. De repente, via uma moça também sozinha, estendia os braços para a frente e para o alto na direção dela e a moça vinha brincar com ele.

Moleza, decidimos nós dois, depois de passarmos umas duas horas observando o panorama da festa. Dava certo com todo mundo. Eu só não tinha a toalhinha, mas diversos destoalhados também apanhavam as moças, de maneira que não podíamos dizer que nos faltava equipamento essencial. Acompanhamos as manobras de vários apanhadores de moças e chegamos à conclusão de que a técnica não tinha segredos. Braços estendidos, sorriso nos lábios, pulinhos no ritmo da marchinha sendo tocada, ar confiante e moça no papo. E aí, depois de rondarmos o salão fazendo força para afetar familiaridade e mesmo indiferença diante do fuzuê geral, decidimos entrar na luta.

Ah, meus amigos, botem trauma de adolescente nisso. De meu posto de observação junto ao salão, podia ver algumas moças bem aproveitáveis, apesar de as melhores já estarem tomadas, que deveriam ser presas fáceis para foliões dando sopa. Fui realista e escolhi uma dentucinha de óculos. Era bem capaz de ela também ter trauma e aceitar solidariedade em meus braços estendidos. Respirei fundo, andei para lá e para cá alguns minutos, para finalmente adentrar o salão. Ela estava do outro lado, o que me dava tempo para deixar de me sentir ridículo, pulando sozinho com um sorriso que, creio eu agora, devia parecer esculpido a faca. Não envergonhei a pátria, fui em frente com decisão e coragem. Eis que finalmente, a uma distância de dois metros, encarei a dentucinha, levantei os braços e esperei estar com a mão no ombro dela em poucos instantes. Mas, assim que ela me viu em pose de combate, me lançou um olhar de que até hoje não gosto de lembrar e deu uma meia-volta fulminante. Claro, ninguém mais reparou em nada, mas eu me achei desmoralizado permanentemente, o que se confirmou com várias outras, até que desisti. Até hoje não estendo os braços para ninguém, há um limite para rejeição, mesmo depois dos sessenta.

Mas o pior trauma foi o que acho que já contei aqui, faz algum tempo. Muita gente, contudo, não leu ou não lembra, de maneira que acho que posso contar de novo. Foi quando, depois de diversas outras tentativas, de blocos a batucadas, cedi a pressões e resolvi sair em Itaparica, na companhia de um primo meu, ambos vestidos de mulher. Era tanta minha vontade de ser carnavalesco que achei que, se me desse bem daquele jeito, ia entrar para um bloco de bonecas qualquer, destino é destino. E aí nos preparamos nós, envergando cada um uma máscara daquelas de pano e nariz vermelho que se usavam muito antigamente.

Devo confessar que, pouco tempo depois de zanzar pela ilha, pulando aqui e ali daquele jeito, achei que não tinha muita graça. Meu primo também, mas, tratando-se de um jovem com espírito prático e empreendedor, ele resolveu que, se assim não nos divertíamos, pelo menos podíamos tirar algum proveito da situação. E, claro, o primeiro que nos veio à mente foi faturar uma graninha, coisa muito comum entre os mascarados daquela época, lá na ilha. E nosso alvo era garantido: o avô de meu primo e meu tio-avô, que era rico, apesar de não muito reputado pela mão aberta, ou talvez por causa disso mesmo. De qualquer forma, o máximo de nossa ambição eram uns trocados que pelo menos recompensassem em parte nosso sacrifício em prol das tradições nacionais, nada que lhe arranhasse a fortuna.

Chegamos lá à casa dele, entramos falando com aquela vozinha fina de careta dos velhos tempos e fizemos uma porção de brincadeiras com todo mundo em casa, até chegarmos ao velho. Estava na hora de mexer com ele e, no fim, pedir um dinheirinho mixo qualquer. Ficamos junto a ele, dizendo não recordo que bobagens, até que ele me piscou um olho safado e, antes que eu pudesse fazer alguma coisa, enfiou a mão por baixo de minha saia. Pulei fora rapidamente.

— Que é isso, vô, sou eu! — exclamei, tirando a máscara.

— He-he-he — fez ele, sem sinal de arrependimento. — Quem não quer ser não tenta parecer!

E, mesmo depois de tudo esclarecido, recusou-se, alegando no momento se encontrar desprevenido, a nos dar um tostão. Carnaval, desengano.