terça-feira, janeiro 31, 2006

Luiz Garcia Sabe-se que ninguém sabe

O GLOBO

Sabe-se que ninguém sabe

Numa revista semanal em que trabalhei no século passado, o pessoal da editoria internacional a custo eliminou o vício de iniciar o último parágrafo da maioria dos textos com a expressão “resta saber se...” O cacoete tinha justificativa: não são comuns os acontecimentos internacionais cujos desdobramentos podem ser previstos com certeza absoluta: o número de possibilidades é grande demais.

Era assim e continua sendo. Por exemplo, o que pode acontecer no Oriente Médio com a vitória do Hamas nos territórios palestinos? Os centros de poder em todo o mundo podem prever, sugerir, exigir — mas, no fim das contas, falta-lhes uma idéia sequer aproximada sobre o que vem por aí nesta experiência inédita: um grupo ostensivamente dedicado ao terrorismo anti-Israel, ganhando a missão de criar um país de fato e de direito, parede-meia com Israel, e precisando muito de apoio.

Na região onde até hoje nenhum plano de paz deu certo, a incerteza prevalece. Os motivos que aos olhos dos chefes do Hamas justificavam os atentados como arma política continuam existindo. Mas um governo terrorista é uma contradição em termos.

Uma administração palestina pode se opor a políticas de Israel — são favas contadas — mas não pode abrir mão de dialogar com a comunidade internacional da qual depende materialmente para sobreviver. Mas nenhum ou quase nenhum governo dos muitos que até hoje têm contribuído fortemente para essa sobrevivência — ajudando a autoridade palestina no complicado esforço para se transformar num Estado realmente independente — pode aceitar que um governo do Hamas atue como o Hamas fora do poder. Ou seja, planejando e levando a cabo, sistematicamente, a morte de inocentes.

A Palestina pode se opor a Israel de diferentes maneiras, todas elas políticas. Isso a comunidade internacional entende, e, se for essa a opção, manterá abertas as torneiras da ajuda econômica. Além de renunciar ao terrorismo, o novo governo terá de reprimi-lo. Poderá declarar sua oposição à existência do Estado de Israel, mas sem manter a meta de destruí-lo. Nada é simples; mudanças graduais, em etapas, possíveis em tantas situações, neste caso representam hipótese patética. Imagine-se a reação de Israel a um anúncio de que os homens-bomba desaparecerão gradualmente: três por mês, dois por mês, um por mês...

Enfim, o Hamas tem de mudar muito e imediatamente. Poucos analistas, na imprensa e nas chancelarias de todo o mundo, são otimistas a respeito.

Raras situações têm justificado com igual propriedade o recurso a vagas conclusões começando com “resta saber se...”

Em Brasília, o presidente Lula afirmou, com ênfase arrumada não se sabe onde: “A eleição do Hamas vai fazer com que o exercício da democracia seja levado à sua plenitude.” Uma assessoria competente lhe recomendaria apenas afirmar, modestamente, que sonha com esse desenlace, reconhecendo no mesmo fôlego não ter a mais vaga idéia de como ou quando ele se dará.

Usando o lugar-comum pela última vez, resta saber se alguém no Itamaraty ou no Planalto conseguirá ensinar ao presidente que, em tempos de incerteza sobre o que acontece no mundo lá fora, a melhor política costuma ser boca fechada — ou o seu equivalente diplomático: uma enxurrada de generalidades polissilábicas significando coisa nenhuma.