sábado, novembro 26, 2005

VEJA Roberto Pompeu de Toledo A farsa cruel de um ponto de exclamação



O grevismo na universidade recorre a pose
de herói para esconder o papel de vilão

A greve continua! Assim terminava o comunicado expedido na segunda-feira passada pelo comando de greve do Andes – o Sindicato Nacional dos Docentes de Ensino Superior –, dando conta das últimas notícias do movimento deflagrado já lá iam mais de oitenta dias nas universidades federais. O ponto de exclamação ao fim da frase dizia mais de suas intenções do que as palavras. Caso estivesse escrito "A greve continua", sem ponto de exclamação, se trataria de uma informação, não mais que isso, aos associados. O ponto de exclamação mudava tudo. Conferia à frase épicos tons de heroísmo, de ardor pela causa, de brado retumbante. Não, a questão não era apenas que a greve continuava. Era que a greve continua!

O ponto de exclamação, até pela forma, representava uma espada desembainhada contra o inimigo. En garde! Era um convite à arremetida contra o tirano, o opressor, o infiel. Ele vai ver só! Quem vai ver? Quando há greve numa fábrica, quem "vai ver só" é o patrão, que sentirá seus efeitos no bolso. Numa greve em universidade, com perdão para repisar no óbvio, são os alunos. É contra eles, ao fim e ao cabo, que se produzem seus resultados. O ponto de exclamação do Andes era uma espada espetada contra a barriga da estudantada.

O Andes, em temporada de euforia cívica, informou que patrocinou dezesseis greves nas universidades federais desde 1980, perfazendo 978 dias de paralisação. Santo Deus, que proeza! – e lá vai outro ponto de exclamação, que é isso que o Andes julga merecer com tal performance. O jornal O Globo fez algumas singelas continhas e chegou a conclusões não tão lisonjeiras para o sindicato dos docentes. Os 978 dias equivalem a dois anos e oito meses. Descontados os fins de semana, e levando em conta que o ano letivo tem 200 dias úteis, chega-se a três anos e meio sem aulas. Mais seis meses e se completariam os quatro anos equivalentes a bom número de cursos de graduação. Claro, há as famosas reposições. Mas, até acontecerem, já quebraram o ritmo que, como em qualquer atividade, é fundamental para os bons resultados. E, quando acontecem, é em meio aos atropelos do Natal ou do Ano-Novo, às preguiças do verão ou do Carnaval, quando as cabeças não estão na melhor forma para os rigores do estudo.

O deputado Paulo Delgado (PT-MG), alertado pela reportagem do Globo, iniciou, como presidente da Comissão de Educação e Cultura da Câmara, um movimento para regulamentar o direito de greve nas universidades públicas. A providência, tal qual a famosa reforma política, inclui-se entre as que caem de podres, de tão necessárias para desentravar o país, mas que, por contrariar interesses corporativos, são sempre jogadas para as calendas gregas. "Há um abuso do direito de greve", diz Delgado. A presidente do Andes, Marina Barbosa, reage: "O direito de greve está previsto na Constituição. Qualquer regulamentação restringirá esse direito". Eis um modo enviesado de ler a Constituição. Ali está escrito (artigo 37, VII) que o direito de greve dos funcionários públicos "será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica". Opor obstáculos à materialização da lei específica é desrespeitar o texto constitucional.

Para citar um exemplo, só um, de como o espeto do Andes encosta na barriga dos estudantes, atente-se para uma decisão tomada pelo comando de greve da Universidade Federal de Campina Grande, na Paraíba. Comunicaram os grevistas na quarta-feira passada que não corrigirão as provas da primeira etapa do vestibular de 2006. Com isso, e enquanto durar a greve, não poderá ser realizada a segunda etapa. Sabe-se o que significa para um jovem o ano do vestibular – muito trabalho, tensões, angústias. Os grevistas de Campina Grande resolveram adicionar a esse amargo coquetel a incerteza em torno de quando – e se – as provas serão realizadas.

"É preciso atualizar a agenda da indignação", afirma o deputado Paulo Delgado. "A greve continua!" é irmã gêmea de "A luta continua!". Que por sua vez é prima de "O povo unido jamais será vencido!" e cunhada de "Abaixo a ditadura!". Pertencem todas a uma família de slogans apropriados ao combate contra os regimes castradores de direitos e opressores do povo. Tiveram seu papel durante o regime militar. Na democracia, merecem ser usados com cuidado. Quando menos, o cuidado de verificar se o direito de um – o de greve, da parte do docente – não fere o do outro – o de ter aulas, da parte do estudante.

A greve nas universidades federais, desgastada como costuma acontecer com esses movimentos que se esticam sem rumo e sem nexo, ameaçava morrer de morte natural no fim da semana passada. Ao completar 88 dias, na sexta-feira, tinha chance de escapar (por pouco) do terrível anátema lançado pelo senador Cristovam Buarque, o primeiro dos três ministros da Educação do governo Lula. "Uma greve que ultrapassa os 100 dias mostra que a universidade não é mais necessária, da forma como está estruturada", disse ele ao Globo. "Imagine um banco parado por 100 dias."