domingo, novembro 27, 2005

Gaudêncio Torquato Lula entre o feijão e o sonho

OESP

 

Ao atingir o índice de 46,7% de rejeição, Luiz Inácio Lula da Silva entra, pela primeira vez em seu governo, no inferno da condenação social. Se os dados da pesquisa CNT/Sensus se mantiverem até meados de 2006, o presidente poderá juntar-se ao rol de candidatos que amargaram derrotas por ultrapassar a margem dos 40%, considerada fatal. Mais importante, porém, que traçar projeções sobre o futuro, até porque vitórias eleitorais no Brasil contemporâneo só são decididas nas vésperas do pleito, é desvendar as razões por que se vem acentuando a queda na avaliação positiva do governo e do mandatário-mor. Se a economia está indo tão bem, com as exportações ultrapassando US$ 100 bilhões este ano, a inflação sob controle e perspectiva de elevação do superávit fiscal de 4,25% para 4,7% do PIB, por que esta grandeza não eleva o governo ao mais alto pedestal do reconhecimento social?

A resposta à questão se insere no cerne das preocupações dos atores políticos - da situação e da oposição - que lubrificam armas e estocam munições para a batalha de 2006. O primeiro argumento abriga estilhaços da crise, que tem como personagem central o PT. A cadeia de episódios - somando acusações, depoimentos, provas testemunhais e documentais - derrubou a imagem do partido, de seus representantes e governantes. Nos primeiros instantes do sismo, que começou há seis meses, Lula agiu como prestidigitador, driblando as situações negativas, desviando-se dos tiroteios sob o escudo do magistrado rigoroso e empenhado em apurar as denúncias. Com sucesso, descolou a imagem pessoal da identidade do governo. A intensa e contínua exposição da bateria de depoimentos nas CPIs e a massiva divulgação de documentos incriminadores aproximaram a figura do presidente da fogueira. A atuação da mídia foi fundamental para furar a redoma presidencial.

A Lula restou a alternativa de entrar na arena e bater forte. No segundo ciclo da crise, acusou elites de tramar golpes, cantou os mantras do êxito econômico, dividiu com os partidos as tramóias cometidas pelo PT e cometeu erros fantásticos, como as referências ao uso generalizado de caixa 2. Formadores de opinião passaram a rebater as luladas. No meio da confusão, o Ministério perdeu rumo. A saída de José Dirceu foi mea-culpa. Ao entrar no terceiro momento da hecatombe que se abateu sobre o governo e o PT, com seqüelas em outros partidos, inclusive o PSDB, o País vive a grande interrogação: em que vai dar tudo isso? O presidente já não consegue fazer-se alheio à crise. Explicações inconsistentes, como a dada pelo presidente do Sebrae, Paulo Okamotto, sobre a quitação de uma dívida pessoal de Lula, expandem suspeitas. Por conveniência, a palavra impeachment é riscada do dicionário das oposições. Mas o PT não esconde a índole do escorpião que pica o sapo, depois de este lhe oferecer as costas para atravessar o rio. O partido da estrela desbotada injeta veneno no próprio corpo. Não é isso que ocorre quando a voz autorizada da ministra mais próxima ao presidente, Dilma Rousseff, defende publicamente a mudança da política econômica?

O segundo argumento para a queda da avaliação positiva de Lula é a postura olímpica. Narciso apaixonou-se pela própria imagem refletida nas águas da fonte; dedicando-se à autocontemplação, definhou até morrer na beira do lago. Lula é o nosso Narciso encantado. Nada parece afetá-lo. Sente-se imune às intempéries. O suor do rosto (que limpa em todos os eventos) é o bálsamo de uma política de carícias ao ego. Julga-se onisciente e infalível. Não ouve nem vê sinais de alerta. Promete acabar com as filas do INSS, mas é desmentido ao vivo pelo próprio ministro da Previdência, Nelson Machado, que nega a possibilidade. O discurso para platéias pré-selecionadas já não provoca o eco dos primeiros tempos. Michelangelo, alucinado diante da beleza de sua obra-prima, a escultura de Moisés, exclamou: "Fala, fala!" Lula, extasiado diante das glórias realizadas, grita aos brasileiros: "Ouçam, ouçam!"

Acredita que ganhará as eleições se puxar o cordão da sociedade pelas pontas do fundão. Espera que os 11 milhões de famílias beneficiadas com a "mesadinha" dos pobres façam a diferença. Erra quem assim pensa. A distribuição de renda por contingentes depauperados não é suficiente para endeusar Lula no Olimpo. A recente pesquisa até mostra que ele ganha apoio entre os mais carentes. Ora, o meio da sociedade - decisivo na vitória lulista - está muito contrariado. E este povo do centro faz ecoar indignação até as margens distantes. Se o cobertor do governo cobre os pés dos pobres, descobre a cabeça dos setores que mais fazem girar o motor da sociedade. Ademais, Lula e o PT serão marcados pela ênfase: a maior roubalheira da história política, escancarada ao público, ocorreu no atual governo. Repartir esse legado com outros continuará a ser a meta dos petistas. Usará todos os meios para dividir o ônus. Nesse ponto, vale supor que o fator ético deverá prevalecer sobre o fator econômico. As armas da economia estável de Palocci não terão tanto poder de fogo quanto os tiros políticos do seu governo.

No romance de Orígenes Lessa O Feijão e o Sonho, Campos Lara, o poeta, embalava sonhos. Povoava a cabeça de versos. Maria Rosa, a mulher, pisava no chão da realidade. Batalhava para sustentar a família. E escapar da miséria e do infortúnio. A fantasia na cabeça de Lara e a escassez no prato de Rosa formam a antítese que alicerça a vida dos brasileiros. A aspiração de grandeza e a dureza do cotidiano explicam a nossa trajetória. Talvez esteja nessa dualidade mais uma explicação para a crescente desesperança em Lula. O feijão não chega para todos. E o sonho da grande virada se desmancha no ar poluído da política. Lula cai nas pesquisas porque a tocha da esperança que acendeu vai bruxuleando nas ondas da borrasca moral que toma conta do País.