quinta-feira, fevereiro 24, 2005

Folha de S.Paulo - Editoriais 24/02/2005

PROPOSTA INACEITÁVEL

É inaceitável a proposta apresentada pelo ministro da Fazenda, Antonio Palocci, para preservar o cerne do entulho tributário que onera as empresas prestadoras de serviço, sorrateiramente introduzido na MP 232, em princípio destinada a corrigir -de maneira insuficiente, diga-se- as faixas de rendimento sobre as quais incide o Imposto de Renda da Pessoa Física.
Erraram os representantes do empresariado que se encontraram anteontem com o ministro, caso tenham, de fato, como se noticiou, sinalizado que concordam com a idéia de a MP passar a conferir "tratamento diferenciado" a essas empresas -aliviando apenas aquelas que possuem empregados. Mesmo que, à primeira vista, essa versão seja menos ruim do que a original, ela mantém o intuito do governo de aumentar a arrecadação e de tratar como sonegadores os profissionais liberais que trabalham como pessoas jurídicas -conforme já disse o secretário da Receita, Jorge Rachid.
É fato que, em algumas categorias, a transformação de profissionais mais qualificados em pessoas jurídicas que prestam serviços vem-se tornando uma alternativa usual. Esse fenômeno, que tem a vantagem de manter as relações num regime formal, é fruto de circunstâncias do mercado de trabalho que não podem ser equacionadas com medidas destinadas a aumentar os custos das partes. Isso criará dificuldades que provavelmente irão fomentar aquilo que se pretende, em princípio, combater: a informalidade e a sonegação.
Não é demais lembrar que essa intenção do governo petista de punir os profissionais liberais e a prestação de serviços contratada por empresas já se havia traduzido, em setembro de 2003, num considerável aumento da base de tributação -que passou de 12% para 32%. Nada justifica que agora, com o pretexto de compensar perdas -quando na realidade a arrecadação bate recordes e a carga tributária atinge patamares estratosféricos- o ministro Palocci e seu companheiro Jorge Rachid queiram levar adiante essa sandice. Só há dois desenlaces satisfatórios para esse caso: o governo retirar a proposta de aumento da base de tributação ou o Congresso Nacional rechaçá-la.


INCOMPETÊNCIA NA SAÚDE


O mundialmente elogiado programa brasileiro de distribuição gratuita de medicamentos anti-retrovirais a pacientes com HIV está ameaçado pela incompetência e pelas desavenças políticas no governo federal. O quadro é alarmante: a falta de medicamentos já prejudica dezenas de milhares de pacientes, de acordo com informações oficiais.
Desde 1996, o programa tem beneficiado um contingente que hoje atinge 155 mil pessoas, segundo o Ministério da Saúde. Nos últimos meses, no entanto, o ministério não tem conseguido manter os estoques dos 15 medicamentos do coquetel que permite controlar a carga viral, aumentando as chances dos pacientes de levar uma vida normal.
Nos mais de oito anos do programa, os óbitos causados pela Aids no país foram reduzidos pela metade, e as internações por doenças oportunistas, cortadas em 80%.
Uma explicação superficial para a atual crise consistiria em culpar os laboratórios estrangeiros pelo atraso no fornecimento. Mas a explicação real está na incapacidade do governo de evitar que tais atrasos ocorram.
E isso por duas razões. O ministério atrasou em três meses o pagamento aos laboratórios nacionais responsáveis por 80% do coquetel. E o programa de anti-retrovirais foi submetido a uma bicefalia: segundo o deplorável espetáculo de troca de acusações que esta Folha vem publicando, o ministério, por força de acordos palacianos, foi obrigado a contratar como secretário responsável por essas compras um político do PP que o ministro Humberto Costa (PT-PE) considera adversário.
Para neutralizá-lo, o titular da pasta criou uma estrutura paralela, que não funcionou, entre outros motivos por dificuldades de relacionamento com os fornecedores -habituados a tratar com a referida secretaria.
É espantoso que uma situação como essa venha a prejudicar, com risco de causar mortes, um programa que foi considerado exemplar pela Organização Mundial da Saúde.

REINAÇÕES CONGRESSUAIS

O Congresso Nacional vai se esmerando em tomar decisões que contribuem vivamente para desgastar ainda mais sua já combalida credibilidade. Ontem, na primeira reunião com a Mesa da Câmara, o novo presidente da Casa, Severino Cavalcanti (PP-PE), já se dedicou ao projeto de aumento dos salários de seus colegas e à elevação da verba de gabinete a que têm direito -que passará de R$ 35 mil para R$ 48 mil.
Pelo menos, não se pode dizer que, nesse caso, o parlamentar pernambucano tenha faltado com a coerência, uma vez que tais medidas integravam a plataforma corporativista com a qual conquistou a presidência da Casa. Essa, aliás, é uma vantagem de Severino: ele é o que parece.
Os aumentos devem ser debitados da conta do Planalto e das forças políticas mais responsáveis e estruturadas, ineptos que foram para impedir a transformação do pleito numa feira fisiológica, na qual interesses paroquiais prevaleceram sobre estruturas partidárias e princípios básicos de moralidade pública.
Não bastassem as reinações de Severino, o Senado Federal acaba de sancionar indicações no mínimo polêmicas para o comando de comissões da Casa. Entre os casos que mais chamam a atenção estão os do ex-governador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA), que assumiu a Comissão de Constituição e Justiça, e o do senador Luiz Otávio (PMDB-PA), que se tornou responsável pela de Assuntos Econômicos.
É indispensável lembrar que o representante da Bahia vem de uma renúncia de mandato, em 2001, precipitada pelo escândalo da violação do sigilo do painel de votação do Senado. Já Luiz Otávio é investigado por suspeita de orquestrar uma concessão fraudulenta de financiamentos públicos em prol de uma empresa da qual era gerente.
Ainda que nem sempre seja fácil encontrar parlamentares livres de acusações e de fatos desabonadores em seus currículos, convenhamos que essas escolhas são de lamentar.

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