domingo, outubro 24, 2004

FERNANDO GABEIRA Notas sobre um sarau em Brasília


Quando o marxismo me frustrou como explicação do mundo, fui chorar no ombro da antropologia. Devo muito a essa disciplina, mas fui infiel a ela, antes mesmo de deixar o curso em Estocolmo.
Notícias banais, como o encontro do presidente com a cúpula do PTB em Brasília, deixam uma certa fome de interpretação que a simples análise política não consegue saciar.
O objetivo almejado pelos anfitriões era um afago público do presidente. Emerge aí uma dimensão que merecia um estudo específico: afago público do presidente. Para os políticos, isso representa prestígio, uma vez que seu poder pode ser medido pela proximidade com o dirigente máximo do país.
Na China, por exemplo, as coisas eram mais complicadas. Era preciso analisar a posição das pessoas no palanque para inferir o grau de poder e, em caso de modificações, avaliar o resultado das lutas políticas internas.
O afago de um presidente tem um valor político e um valor sentimental, sobretudo quando se trata de um anônimo na multidão.
Constatei em centenas de comícios como certas pessoas clamam para serem vistas e receberem um aceno do líder. Ele encarna o reconhecimento público e, ao reconhecer um rosto na multidão, o integra nessa corrente de emoções e esperanças.
O jantar de Brasília foi na verdade um sarau, com um pianista e uma soprano. Era um encontro de casais e, naturalmente, estava lá a mulher do presidente. No Brasil, chamamos as mulheres dos presidentes de dona. Como nas novelas de época do SBT, dona Antônia, dona Beija.
A escolha da soprano e do pianista representava uma intenção de introduzir uma diversão sadia e intelectualizada. Foi uma escolha do anfitrião, Roberto Jefferson, que estuda canto das 7h às 9h. Segundo seu relato, dedicava-se ao tiro ao alvo, mas resolveu buscar outra atividade para relaxar.
Do tiro ao alvo ao sarau não parece ter havido grande ganho em relaxamento. No entanto um atirador, ao abandonar as armas e cantar "Eu Sei que Vou te Amar", revela uma transição brusca. O primeiro impulso previsível talvez fosse uma banda de heavy metal. Não é a questão central.
O centro para mim seria examinar como encontro político, que pressupõe uma intensa troca racional, mergulho tanto no terreno das emoções que, a certa altura, a julgar pelas notícias, a soprano foi para os ares ao som de "Sentimental Demais", de Altemar Dutra, cantado pelo anfitrião.
Todo o mistério desse noite concentra-se nessa troca emocional, revelando que a moeda política clássica, cargo, funções, ajuda material, pode ser enriquecida com o componente afetivo, abraços, canções, afagos.
Políticos são muito volúveis. Quando cantam "Eu Sei que Vou te Amar", sabem que aquele verso "por toda a minha vida" não é para valer. Isso não os diferencia dos amantes. Quantas vezes cantamos o verso "por toda a minha vida" e nos perdemos na primeira esquina?
A diferença dos amantes é que acreditam no que cantam e ficam arrasados quando constatam que tudo acabou.
Neste momento, no Brasil, afagos, como posições no palanque chinês, devem ser analisados e podem ser um instrumento adicional ao entendimento da história.
O único detalhe é saber se o sarau de Brasília vai ajudar a transformarmos o tiroteio nos morros do Rio numa grande sinfonia. Ou fazer com que a favela de Bel-Air em Porto Príncipe, em vez de se rebelar contra a derrubada de Aristides, toque "Someday My Prince Will Come".
Esse jantar de codornas recheadas foi preparado para nós. Os jornais nos deram os dados. Você vê os homens de pé diante de um sofá vermelho onde há uma bolsa preta. Isso indica que as mulheres foram afastadas para que a mensagem politíco-sentimental tivesse um foco no acordo de cavalheiros.
O presidente parece um pouco surpreendido, arrumando a roupa como se a coisa tivesse acontecido rápido demais para ele. Todos os olhares se voltam para o anfitrião. Uma das araras do quadro ao fundo abaixa a cabeça, mas democracia é isso mesmo.
O anfitrião do presidente mostrou que é possível passar do tiro ao alvo para o samba-canção. O próximo passo é passar de uma novela de época do SBT para os grandes problemas do nosso século.
Creio que é o desejo majoritário dos convivas simbólicos do jantar, os que acompanharam pelos jornais. Pode ser que uma minoria sensível, a soprano quem sabe, preferisse os tiros de pistola à interpretação musical de Jefferson.
Mais uma vez: é a democracia. Se excluirmos os pessimistas José Simão, Diogo Mainardi e Casseta e Planeta, que bombardeiam nossa auto-estima, todos acharemos isso muito sério.
Mesmo sabendo que o presidente não cantou naquela noite, intuímos que um clima musical envolve o Planalto. O samba-canção, como filosofia ou roupa íntima, é sempre mensagem de estabilidade.
Nem sempre nossas mensagens são entendidas. Acreditamos que uma partida de futebol ajudasse a resolver o drama de dois séculos do Haiti. Quem sabe, um bom Altemar Dutra não vem a nosso socorro?
Eles vão continuar jantando, trocando afagos e cantando "Eu Sei que Vou te Amar". Como mineiro, não posso abaixar a cabeça como a arara nem deixar a bolsa no sofá e sair da sala. Olhe bem as montanhas, clamam alguns muros de nossa Província.

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