quinta-feira, junho 30, 2011
Serra: até as paredes sabem sobre Mercadante
Nem tanto ao mar Dora Kramer - Dora Kramer
O Estado de S. Paulo - 30/06/2011 |
Não se pode tirar a razão da presidente Dilma Rousseff quando ela rejeita a liberação de R$ 4,6 bilhões do Orçamento em emendas parlamentares remanescentes (restos a pagar) de 2009, alegando que isso levaria ao descrédito a disposição do governo em cortar gastos. Ao mesmo tempo não se pode tirar a razão dos parlamentares que reivindicam a execução da parte do Orçamento que constitucionalmente lhes cabe manejar. As emendas assumiram caráter pejorativo, mas são legais e legítimas. A questão está no uso do instrumento. Por isso mesmo perdem ambas as partes a razão quando transformam isso, de um lado em um objeto de chantagem e, de outro, em uma tentativa de afirmação de autoridade e de certo modo de busca de popularidade em cima de um adversário, neste aspecto, fácil dada a má imagem dos políticos junto ao público. Posta como está, a discussão não progride e fica torta: Dilma como a heroína da resistência, que acabará cedendo ou pagando o pato, e os parlamentares como um bando de achacadores que usam suas prerrogativas de votos para o atendimento de interesses supostamente obscuros. Convém, portanto, ir devagar com a louça. De um modo geral, tais interesses são nítidos: levar recursos para obras em seus redutos eleitorais ou para quaisquer setores que considerem prioritários. As distorções são outro problema, da alçada policial. Da parte do governo há a responsabilidade para com o controle dos gastos. Responsabilidade esta que deveria também guardar austeridade em relação aos gastos de interesse imediato do Planalto. Eleitoral, por exemplo. Não se pode considerar a presidente heroína por se recusar a pagar nem os parlamentares achacadores por reivindicarem receber. O erro é de origem: na Presidência quando usa as emendas como forma de assegurar fidelidade de votos no Congresso, e no Parlamento quando condiciona os votos à liberação das emendas. Em tese, os dois lados estão certos. Na prática, juntos constroem uma deformação por ausência do sentido republicano no tocante à equivalência entre os Poderes. A se continuar a tratar o assunto como uma relação mercantil, sem o cumprimento das regras (todas elas) tais como descritas em lei e prescritas na lógica da melhor condução das atribuições de Legislativo e Executivo, não há a menor chance de dar certo. Retrato na História. Se o Itamaraty não tem nada contra, se o ministro da Defesa diz que os militares não têm nada contra, se a maioria do Congresso aprova, se a presidente Dilma Rousseff é a favor do texto da Lei de Acesso à Informação tal como está, por que José Sarney e Fernando Collor querem o sigilo eterno para documentos oficiais ultrassecretos? Considerando que o prazo máximo para divulgação é de 50 anos e que até lá nenhum dos dois estará por aqui, só há uma razão plausível: legislam em causa própria temerosos do julgamento da posteridade. Efeitos Battisti. Antonio Tabucchi, dos escritores europeus mais importantes da atualidade, desistiu de participar da Festa Literária Internacional de Paraty em razão da decisão brasileira de não extraditar Cesare Battisti. É mais uma entre várias manifestações de italianos que demonstram que a extradição não era só uma questão de governo na Itália. Neste caso, ficamos assim: antes um terrorista condenado que um escritor consagrado. Efeito Delúbio. O PT perdeu Vladimir Palmeira, uma figura histórica nem sempre alinhada aos interesses do partido. Em 1997, por exemplo, o PT nacional interveio na escolha da candidatura de Palmeira para governador do Rio de Janeiro em 1998, preferindo jogar o partido na aliança com Anthony Garotinho, que viria em pouco tempo conferir aos aliados o dístico de "partido da boquinha". Vladimir agora sai pelo simbolismo que representa a volta de Delúbio Soares. |
Mais coerência Celso Ming
O Estado de S. Paulo - 30/06/2011 |
Sob vários aspectos, o Relatório Trimestral de Inflação divulgado ontem está mais equilibrado e, desta vez, não tenta forçar a mudança das posições dos "fazedores de preço" com argumentos que mais têm a ver com apostas do que com o vigor da política. Isso aconteceu no primeiro Relatório deste ano, quando o Banco Central, conduzido pelo recém-empossado Alexandre Tombini, pretendeu vender a ideia de que os efeitos colaterais das chamadas medidas macroprudenciais (restrições à expansão do crédito) poderiam compensar certo atraso no acionamento da política de juros. Há outras quatro observações relevantes a se fazer sobre esta edição do Relatório. A primeira delas está no tom mais otimista do que o esperado em relação aos riscos que corre a economia mundial. Enquanto os analistas de maior peso avisam que não foi superada a ameaça de séria desorganização do mercado financeiro internacional, em consequência da deterioração fiscal da União Europeia e dos Estados Unidos, o Banco Central prefere se ater à "hipótese de continuidade de recuperação da atividade (...) e em ritmo mais moderado do que o esperado quando da publicação do último Relatório". Desta vez, se sobrevier o pior, não será possível alegar que não se poderia esperar por um efeito semelhante ao que ocorreu quando da quebra do Lehman Brothers, em 2008. Segunda observação: o Relatório parece sobrevalorizar o ajuste das contas públicas por meio de cortes no Orçamento da União. Não é o que está acontecendo. A obtenção de melhor resultado fiscal não se deve à redução firme das despesas públicas, mas ao aumento da arrecadação. A terceira observação tem a ver com a ênfase dada ao impacto inflacionário da expansão dos salários. Com mais clareza do que das vezes anteriores, o Banco Central reconhece que o mercado de trabalho está excessivamente aquecido e que a nova rodada de negociações salariais vai se concentrar num período (julho, agosto e setembro) em que a inflação em 12 meses estará no seu máximo. Mais ainda, dessa vez não se omite quando se trata de avaliar o impacto inflacionário das novas regras de reajuste do salário mínimo. O problema, aí, está na generalização de reajustes reais de salário "em níveis não compatíveis com o crescimento da produtividade", fator que tende a puxar a renda para níveis acima da capacidade de oferta da economia, o que é inflacionário. Finalmente, o Banco Central enfatizou de maneira mais veemente a necessidade de coordenação das expectativas de inflação. Teme que a excessiva esticada dos preços no final de 2010 e no início deste ano contamine demais a disposição de remarcar preços na economia. Mas, se esse risco não é desprezível, seria necessário reconhecer também que a forte descoordenação das expectativas nos primeiros meses do ano somente aconteceu porque o Banco Central errou nos diagnósticos e demorou demais para atacar a inflação. Pareceu, por exemplo, ter comprado o argumento do ministro da Fazenda, Guido Mantega, de que a alta de preços acontecia não em decorrência do aumento da procura provocado pelas despesas excessivas do governo, mas de um choque de oferta de alimentos, em consequência de problemas climáticos. Seguia-se então que não havia muito o que fazer e essa omissão só foi revertida quando a presidente Dilma Rousseff lembrou que a prioridade de seu governo é o combate à inflação, não o crescimento insustentável. CONFIRA Rasteira O resumo da ópera nesse projeto da megafusão entre Pão de Açúcar e Carrefour é mais ou menos este: o empresário Abílio Diniz se arrependeu de ter assinado contrato com o Grupo Casino, que lhe dava o direito de adquirir o controle acionário do Pão de Açúcar. Por isso, armou esse esquema em que passa a perna nos sócios. Tudo isso, com a chancela do BNDES, que se prontificou a liberar mais de R$ 4 bilhões para viabilizar a operação. |
Pressionada MERVAL PEREIRA
O recuo que ela foi obrigada a fazer diante da pressão da base aliada, que a chantageou para que liberasse os restos a pagar de emendas parlamentares, pode ser um ponto de não retorno logo no início do seu governo. Ou ela se submeterá às chantagens, ou montará um Plano B para poder governar sem essa ameaça permanente.
O ex-presidente Lula tentou reagir à entrada do PMDB no seu primeiro governo, tendo vetado um acordo feito pelo então ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu.
Mas, convencido de que a política congressual se fazia assim mesmo, foi deixando que as bases de troca de apoio ao governo seguissem a lógica do favorecimento, o que resultou no escândalo do mensalão.
Esse esquema nada mais era do que a compra de votos no Congresso, às vezes com dinheiro vivo mesmo, outras com nomeações e favores diversos.
Depois da crise, optou-se por escancarar o esquema de toma lá dá cá, incluindo no Ministério as duas bandas do PMDB da Câmara e do Senado, deixando de lado lideranças políticas independentes.
A presidente Dilma Rousseff recebeu essa herança da era lulista, que, por ter ajudado a elegê-la, agora cobra seus nacos de poder.
A maior aliança política já formada por um governo desde a redemocratização não significa, no entanto, uma força política para levar adiante um projeto de transformação do país, mas apenas um agrupamento de diversas correntes interessadas em esquartejar o governo para dele tirar o maior proveito político possível.
O assédio fisiológico tem sido tão descarado que a própria presidente Dilma tem reagido mandando avisar, especialmente ao PT e ao PMDB, que não pretende abrir mão da capacidade de decisão presidencial que lhe foi atribuída pelas urnas.
Além do mais, está ficando explícito que setores importantes da aliança, especialmente do PT, tratam sua gestão como um mero intervalo obrigatório entre os governos de Lula, que já seria o candidato natural para a eleição de 2014.
A cordialidade com o PSDB pode ser apenas uma tentativa de marcar posição distinta da de Lula, que, depois de um período em que, ainda sonhava com uma aproximação com os antigos parceiros políticos, decidiu que a separação litigiosa seria mais proveitosa para fortalecer sua imagem de líder.
É verdade, porém, que, sempre que pode, desde o discurso de posse, a presidente Dilma Rousseff faz um apelo à união nacional e ao desarmamento dos espíritos em prol de objetivos maiores.
A carta que enviou ao ex-presidente Fernando Henrique, pela comemoração dos seus 80 anos, e a nota oficial que emitiu sobre a morte do ex-ministro da Educação Paulo Renato Souza, um dos fundadores do PSDB, são exemplos de civilidade política que ela já havia dado ao convidar FH e outros ex-presidentes para o almoço em homenagem ao presidente dos EUA, Barack Obama, colocando o tucano em lugar de destaque especial.
Assim como se recusou a comparecer ao almoço, Lula não se dignou a enviar os cumprimentos ao seu antigo aliado e amigo que a política distanciou.
Mas as palavras de Dilma, em poucas linhas, desconstroem a estratégia marqueteira montada em muitos anos de embate entre PSDB e PT.
A presidente Dilma Rousseff elogiou por escrito: "(...) o ministro-arquiteto de um plano duradouro de saída da hiperinflação e o presidente que contribuiu decisivamente para a consolidação da estabilidade econômica".
Ela destacou também o espírito democrático do homem público, que se traduziu "na crença do diálogo como força motriz da política e foi essencial para a consolidação da democracia brasileira em seus oito anos de mandato".
Sobre Paulo Renato, foi mais comedida, mas admitiu que ele prestara "relevantes serviços ao país". Diversas manifestações petistas puseram em destaque o papel do ministro da Educação dos oito anos do governo de Fernando Henrique na universalização do ensino básico e na implantação da cultura de avaliação na educação brasileira, pontos fundamentais para uma renovação que precisaria ser seguida da melhoria da qualidade do ensino que, infelizmente, não atingimos ainda.
Sem dúvida a orientação da presidente Dilma no sentido de desobstruir os canais de entendimento com o maior partido de oposição e o reconhecimento de fatos positivos dos governos tucanos desanuviaram o ambiente político, dando condições para que a presidente resista à chantagem política a que PMDB e PT querem submetê-la.
Também no PMDB já existe um movimento que se amplia, especialmente na bancada do Senado, com parlamentares tentando se diferenciar da moral homogênea (com licença do Marcito) que impera no partido.
O senador Pedro Simon (PMDB-RS) leu da tribuna uma "carta aberta" à presidente Dilma Rousseff para pedir à petista que resista à pressão de aliados para a ocupação de cargos e maior espaço no governo, incluindo expressamente seu partido entre os que assim agem.
Ter "um quinhão" do governo é legítimo, ressalvou Simon, mas não "para tirar vantagem".
Num ambiente conturbado como esse dentro de sua base aliada, até que uma boa vontade da oposição não é mau negócio para o governo. resta saber se ela tentará um Plano B ou se aceitará o papel de uma presidente-tampão dominada por uma coalizão política montada por seu mentor.
Pão de Açúcar-Pão francês MIRIAM LEITÃO
O negócio, se virar realidade, vai concentrar mais do que os 30% que o governo e os interessados estão dizendo. Em algumas regiões, pode ser muito mais. As pequenas redes se espalham pelo interior ou em áreas específicas da cidade. No estado de São Paulo, uma conta simples derruba o cálculo dos 30%. O faturamento do Pão de Açúcar está sendo estimado no setor como de R$25,3 bilhões; o do Carrefour, de R$17,4 bilhões. Isso representa 69,9% do total de faturamento do setor em São Paulo, que foi de R$61 bilhões em 2010.
Em determinadas cidades pode ser até maior que isso. Quem perde é o consumidor que ficará refém de um grupo só - ou no máximo com uma ou outra opção. Perderão também os funcionários porque algumas lojas serão fechadas. Como já são grupos grandes e bem estruturados o ganho de escala não será muito importante, portanto a ideia de que isso resultaria em preços menores é falsa. Perderão também os fornecedores porque não terão poder de barganha.
Capitalismo precisa de concorrência. A consolidação em alguns setores ajuda às vezes a aumentar a eficiência, formar grupos mais fortes, o que aumenta a competição. Certo nível de escala pode ser benéfico. Não é o caso aqui. Os dois já são grandes. Juntos, viram uma arma contra o consumidor e contra a economia.
Seria um assunto para ser resolvido pela lei contra a formação de trustes. Mas o BNDES entrará no negócio como sócio. Confusão insolúvel: o Estado participará do negócio que depois o Estado vai julgar se pode ou não ocorrer.
Ontem os interessados na fusão - ou seja lá o que for esta operação - tentaram influenciar os jornalistas conversando com alguns. Garantiam que era um excelente negócio para o BNDES. Detalhe curioso: preferem falar em off, ou seja, querem convencer os jornalistas de que é um excelente negócio para o país e o BNDES, mas não querem declarar isso publicamente. Que venham à luz defender seus interesses e sustentar seus argumentos.
Minha convicção é que a operação é ruim; a presença do Estado nela, desastrosa. O banco público brasileiro se tornará sócio de um negócio que pode ir parar na Justiça por acusação de quebra de contrato. O banco estatal não tem razão alguma para ser sócio de supermercado francês, porque é isso que o Pão de Açúcar vai se tornar. Virará um naco do grupo francês. O BNDES tem feito inúmeras operações controversas, ressuscitou o ideário de escolha de campeões do governo militar, beneficiou umas empresas em detrimento de concorrentes, forçou concentrações, salvou empresas quebradas. Neste caso, no entanto, ele extrapolou.
O argumento de que a operação abrirá o mercado francês para os produtos brasileiros é, para usar uma palavra educada, ingênuo. O mercado francês é o mais fechado da Europa. Eles são protecionistas por convicção e vocação. Subsidiam ferozmente seus produtores para que não venha de fora nada do que produzam internamente. O Carrefour em todas essas décadas no Brasil não foi uma rota para essa inclusão de produtos brasileiros, por que passaria a ser só porque agora ele terá capital brasileiro minoritário?
O Estado brasileiro é grande. Enorme. Recentemente a revista "Época" prestou um serviço ao país quando fez um levantamento e chegou à conclusão de que direta ou indiretamente 675 empresas no Brasil estão sob influência do Estado. Os jornalistas José Fucs e Marcos Coronato, que lideraram o estudo feito por uma equipe da revista, escreveram que: "A teia de interesses estatais nos negócios é tão complexa, tem tantas facetas e envolve tantos conflitos de interesse que o próprio governo não consegue avaliá-la." Por isso eles levaram três meses, tiveram a ajuda de uma consultoria, a Economática, e se restringiram às empresas que têm participações diretas ou indiretas do governo Federal apenas.
O BNDES sempre participou de empresas e sempre participará. Ele financia ou compra participações; entra e sai de negócios. Alguns bons, outros discutíveis. Mas o problema é que a partir da gestão Luciano Coutinho ele decidiu se transformar em fazedor de grandes grupos. No caso dos frigoríficos, decidiu que era preciso concentrar e por isso financiou o crescimento dos que ele considerou que deveriam ser os donos da carne. Virou sócio do Independência um pouco antes de o frigorífico quebrar. Só em uma das várias operações que fez com o JBS-Friboi ele comprou 99,9% de uma emissão de debêntures para a empresa comprar a Pilgrim"s nos Estados Unidos, e depois transformou os papéis em ações. Assim, ele virou dono de frigorífico nos Estados Unidos, na Argentina, e poderá ser sócio de supermercado francês. Em inúmeros casos, ele é o banco que financia e é sócio do negócio. Está dos dois lados do balcão. Agora, estará também no caixa do supermercado.
Pão de Açúcar-O cofre e os negócios JANIO DE FREITAS
A integração do Pão de Açúcar com o Carrefour compromete o governo Dilma com um negócio juridicamente incerto e com efeitos negativos
O DESVIO DE R$ 3,9 bilhões do BNDES, das suas finalidades primordiais para viabilizar a integração do supermercado Pão de Açúcar com o Carrefour, implica o comprometimento do governo Dilma Rousseff com um negócio privado de futuro juridicamente incerto e com esperáveis efeitos negativos para os consumidores e a economia social. Obra possibilitada pelo uso do dinheiro público que engorda o cofre do banco.
Com esse envolvimento articulado em sigilo, como convém aos dias de hoje, o BNDES persiste no governo Dilma com sua presença bilionária e decisiva; durante o governo Lula, na senda de negócios suspeitos ou, mais do que isso, ostensivamente contrários às leis -como o negócio das telefônicas Oi/ BrTelecom, tramado contra proibição legal explícita. E, está provado, sob justificativas falseadas: nenhum proveito se mostrou ao país ou aos consumidores.
Invocar a ética em tal nível do capitalismo seria imperdoável. Mas seja qual for o nome apropriado, a parcela de fatos afinal conhecidos -depois de negados com firmeza pelos protagonistas- indica que o Grupo Pão de Açúcar está burlando o seu sócio Casino, também francês, que o socorreu em dificuldades não distantes e ao qual, por contrato e por pagamento feito, deveria entregar parte substancial de si mesmo em 2012. O já previsível é que o Grupo Casino defenda os direitos que proclama em páginas inteiras de jornais.
Ao agravar a participação do governo por intermédio do BNDES, o ministro do Desenvolvimento, Fernando Pimentel, insulta a percepção dos cidadãos com a pretensa justificativa de que a integração do Pão de Açúcar com o supermercado francês "facilitará a entrada de produtos brasileiros na Europa". O Carrefour não precisaria de associação alguma para criar a facilidade, se a desejasse e pudesse criá-la, nas suas décadas de Brasil; não tem na Europa, nem mesmo na França, toda a dimensão insinuada por Pimentel; são inúmeros os meios efetivos, de fato, para "facilitar a entrada de produtos na Europa" e não só lá, o que se viu nos últimos tempos.
Acréscimo especial à desrazão de Pimentel: se ele e o governo Dilma não sabem, o Carrefour está sem meios, ainda mais para hipotéticas colaborações -fechou 2010, como se pôde ler há um ou dois meses em jornais europeus, com prejuízo na ordem dos bilhões. De euros.
É aí que se deve procurar a razão do grupo francês para o negócio. O governo brasileiro faz, porém, mais do que favorecê-lo e ao Pão de Açúcar: desfavorece os consumidores e o já comprometido equilíbrio na oferta e na concorrência dos supermercados. A formação do crescente oligopólio, encabeçada pelo Pão de Açúcar, sairá muito fortalecida do novo negócio. Há cidades em que a situação já é ou está próxima do monopólio. Caso do Rio, para dar um exemplo eloquente, onde o Pão de Açúcar, no mínimo, é ele próprio, criou a rede Extra e comprou a rede Sendas. Graças à maior altitude comum aos seus preços, e nunca atenuada pelo maior faturamento conjunto como não o será, pelo contrário, com os preços em geral bem aceitos do Carrefour-Rio.
Alimentar (sem trocadilho) a voracidade do Pão de Açúcar é contra o que já foi muito chamado de economia popular. Sem que os R$ 3,9 bilhões do BNDES contribuam em nada para maior produção industrial. Nem para um pouco mais de empregos, mas para o desemprego sempre decorrente das fusões em atividades comuns.
O que é Estado laico? IVES GANDRA MARTINS FILHO
Têm surgido com cresente frequência na esfera judiciária questões de caráter administrativo ou judicial envolvendo as relações entre o espiritual e o temporal. Discutem-se a presença de símbolos religiosos em órgãos públicos, o funcionamento desses órgãos em dias santos ou a validade pública de argumentos de caráter religioso.
A questão do que seja Estado laico tem sido enfrentada por numerosos países, com diversas soluções. A França proibiu o uso das burcas, e a Suíça, a construção de minaretes; já na Itália, com a decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos, não se considerou atentado à laicidade do Estado a presença de crucifixos em escolas públicas.
Visando a contribuir para aclarar conceitos e vencer preconceitos, o Conselho Nacional de Justiça promoveu recentemente o Seminário Internacional sobre o Estado Laico e a Liberdade Religiosa em Brasília, trazendo especialistas estrangeiros para discutir com juristas pátrios o tema. O que mais impressionou no encontro, marcado pelo pluralismo de posições, foi a constatação de que as convergências eram infinitamente maiores do que as divergências.
Com efeito, concordavam perfeitamente os palestrantes, prof. Daniel Sarmento, procurador regional da República, e pe. Rafael Moraes, doutor em Teologia Moral, em que o Estado deve ser laico, no sentido de neutro em relação à religião, por força dos princípios constitucionais da igualdade e da isonomia, e que os argumentos religiosos têm carta de cidadania apenas quando passíveis de serem traduzidos em razões públicas.
As razões públicas, explicou Kent Greenawalt, professor da Universidade de Columbia, são os argumentos acessíveis a todos os cidadãos, independentemente do seu credo. Não se baseiam em visões compreensivas ou premissas religiosas, e sim em razões de justiça política. Determinar com precisão o que é razão pública não é uma tarefa fácil, mas o seu marco teórico oferece critérios úteis para a atuação dos agentes públicos, especialmente os juízes, numa democracia liberal.
Massimo Introvigne, sociólogo italiano da religião, foi enfático, em sua conferência, ao defender uma liberdade religiosa plena, que o Estado deve respeitar, não apenas enquanto imparcialidade frente aos diferentes credos, mas no reconhecimento do direito de expressá-lo publicamente e angariar adeptos, através da argumentação e da coerência de vida, nunca pela força ou fraude.
Interessante notar que a nossa Constituição alberga três princípios básicos em matéria de relações entre Igreja e Estado, que são os de separação, cooperação mútua e liberdade religiosa (CF, arts. 5º, VI, e 19, I). No Seminário, procurou-se discutir as melhores formas de aplicar esses princípios. As divergências ficaram por conta das especificações decorrentes dos princípios, no que concerne a questões polêmicas tais como as das uniões homoafetivas, ensino religioso confessional nas escolas públicas e colocação de símbolos religiosos em órgãos públicos.
Já na conferência inaugural, o prof. Jorge Miranda, ilustre constitucionalista português, mostrou que o ponto de equilíbrio entre o Estado confessional e o laicismo agnóstico é justamente uma laicidade saudável, que preserva a autonomia do fenômeno político e ao mesmo tempo respeita o direito de as religiões defenderem e transmitirem os seus valores morais, que embasam a vida social e a dignidade da pessoa humana.
Pode-se dizer que o Seminário, com suas exposições e conclusões, a serem publicadas proximamente, marcou um novo e saudável paradigma nacional de relações entre Igreja, aqui considerados todos os credos, e Estado, reconhecendo ao fator religioso, quando expresso em argumentos de justiça política e não de mera autoridade, foro de cidadania no debate jurídico.
Amigo ou inimigo, o jogo continua SERGIO FAUSTO
A carta de Dilma Rousseff a Fernando Henrique Cardoso reconhecendo os seus méritos como político, intelectual e presidente da República tem importância histórica. Tem também significação política, na medida em que desdiz a catilinária lulopetista sobre a "herança maldita". Não tem, contudo, efeito sobre o jogo político-partidário do PT porque, neste, quem continua a dar as cartas é o ex-presidente Lula. E ele já deixou bem claro que continua a operar dentro da lógica amigo-inimigo, como se de fato a política fosse o prolongamento da guerra por outros meios.
Que o PSDB é o inimigo escolhido já se sabe há muito tempo. É escolha feita desde a preparação do Plano Real, quando Lula, sob os maus conselhos de seus assessores econômicos, preferiu denunciar o suposto "estelionato eleitoral" a apoiar o programa que pôs fim a mais de duas décadas de inflação alta, crônica e crescente e criou as condições para a retomada do crescimento com distribuição da renda. Na Presidência, buscou apropriar-se dos louros da vitória sobre o processo inflacionário, como se fosse ele, e não o seu antecessor, o responsável político pela estabilização monetária, embuste que Dilma indiretamente denuncia em sua carta a FHC.
Desde meados dos anos 90, a escolha do PSDB como inimigo principal vem sendo reiterada a cada passo, sem nenhum escrúpulo de consciência. Ainda recentemente, em meio à crise que levou à renúncia do ministro Antônio Palocci, Lula atribuiu ao PSDB paulista o surgimento na imprensa das informações sobre a inexplicada - possivelmente porque inexplicável - evolução patrimonial de seu ex-ministro da Fazenda. Provas? Não as tinha. Nem mesmo indícios. A acusação leviana servia a um único e deliberado propósito: arregimentar a tropa petista no Congresso Nacional para blindar Palocci na Casa Civil. Em vão.
O pouco-caso pelas instituições e pelos princípios republicanos - para não falar no desdém pela verdade histórica - é parte da lógica amigo-inimigo. Em encontro de dirigentes petistas realizado no interior de São Paulo, logo após a queda de Palocci, o ex-presidente afirmou em discurso que os problemas com os companheiros só surgem quando o partido está desunido. Foi assim no "mensalão", disse ele, invocando o testemunho de José Dirceu, postado ao seu lado. Foi assim também agora, arrematou, fazendo referência ao escândalo que derrubou o ministro da Casa Civil de Dilma Rousseff. Ou seja, não importa se houve ou não houve corrupção, desvio de recursos públicos, enriquecimento ilícito, etc., nesses e em outros tantos casos envolvendo dirigentes do PT e ministros de seu governo. O que importa é preservar a unidade e a força da organização, na luta contra o inimigo.
Mais uma vez, no discurso referido, o propósito do ex-presidente foi arregimentar a base parlamentar petista, desta feita em apoio a Dilma Rousseff. Objetivo legítimo e iniciativa oportuna do ponto de vista do governo. Como líder partidário, Lula tem todo o direito de convocar os seus a respaldar a presidenta. Ninguém o faria com maior eficiência.
O problema é que o ex-presidente, e não é de hoje, se comporta como chefe de uma organização dedicada a acumular poder e evadir-se tanto quanto possível do controle público (não para se autorregular, mas para proteger os companheiros, aloprados ou não). Cada vez mais raras são as vezes que se vê em Lula o homem público preocupado com as instituições e a qualidade da vida política. Vício adquirido na oposição, agravado na Presidência e cultivado depois de deixar o cargo.
Dilma Rousseff não é capaz de operar com a mesma eficiência política, o que era previsível. A presidenta é mulher de convicções - não importa se certas ou erradas - e compromisso com o que lhe parece tecnicamente correto. Custa-lhe visivelmente abrir mão deles, assim como é perceptível sua falta de gosto pelo fazer convencional da política.
Tipo meio ascético, Carlos Lacerda, em seu livro de memórias, relata as dificuldades que vivia para controlar uma parte da bancada da UDN na Câmara dos Deputados no final dos anos 1950, formada por parlamentares boêmios que viviam na noite carioca. Resolveu, então, fazer o sacrifício pessoal de cair na farra por uns dias para criar maior camaradagem com seus liderados. Virou duas noites, de bar em bar. Diz ele que deu certo.
Registro essa história para ressaltar o tamanho do desafio político com que se defronta a presidenta. Sua tarefa é muito maior e mais complexa que a de Lacerda. Para começar, porque não é na farra boêmia que está interessada a maioria da base de sustentação do governo. Para concluir, porque liderar uma bancada parlamentar é algo infinitamente mais simples do que presidir um país como o Brasil.
Passados seis meses de governo, Dilma Rousseff ainda não encontrou resposta para o desafio básico da boa governança no sistema presidencial brasileiro: como compor e preservar de modo estável uma coalizão de partidos que dê sustentação parlamentar ao governo, entregando-lhes cargos e recursos na administração federal, e ao mesmo tempo realizar um programa que requer coerência e eficácia na implementação das políticas públicas.
Jejuna na vida político-partidária, em geral, e na vida parlamentar, em particular, a presidenta acumula tropeços e zigue-zagues na relação de seu governo com o Congresso, como mostram as idas e vindas na questão do sigilo dos documentos oficiais.
Tomara que ela se firme, consiga estabelecer limites à voracidade dos aliados, separando o joio do trigo, e imprima a sua marca pessoal ao governo. É importante para o País que faça um bom trabalho e não permita a Lula exercer, desenvolto, o seu protagonismo anti-institucional, seja em cena aberta ou nos bastidores da vida política (e empresarial)
quarta-feira, junho 29, 2011
Crônica ou parábola? ROBERTO DaMATTA
Quando dizem que a crônica é uma invenção brasileira, eu vejo meu amigo norte-americano Richard Moneygrand me garantindo que a pizza foi inventada em Chicago.
A globalização põe tudo entre parêntesis. Aquilo que os antropólogos antigos sabiam e nutriam como um segredo profissional - o fato de tudo o que é humano é em todo lugar reinventado, inclusive a noção do que é ser humano - foi desmascarado e, neste mundo onde viajar passou de aventura, turismo, exploração ou incumbência religiosa, política ou guerreira, a uma trivialidade. As viagens que o maior antropólogo do século passado, Claude Lévi-Strauss, no seu livro mais íntimo, Tristes Trópicos, diz paradoxalmente odiar na sua linha de abertura, não têm mais sentido hoje, quando todos estão em movimento, a maioria sem rumo ou bússola e - parece - não há mais o que descobrir. Demos a volta em torno de nós mesmos, percorrendo muitas vezes o globo ou a esfera terrestre. Mas continuamos esquecidos de que um mundo esférico não tem início ou fim. Ele é infinito e, num sentido especial, inesgotável. O ponto de partida acaba numa estranha fronteira: o próprio ponto de partida. Daí o axioma: se a pizza foi inventada em Chicago, a crônica é bíblica. E nós, brasileiros, dela gostamos porque preferimos os ensinamentos eternos mais do que as narrativas que ensinam "como fazer".
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Quando cheguei, em 1963, ao famoso Departamento de Relações Sociais da Universidade de Harvard, onde ensinavam Talcott Parsons, Robert Bellah, Cora DuBois e George Homans, entre outros, esperava um prédio mais grandioso do que o do Museu Nacional de onde vinha e, no entanto, deparei-me com uma modesta (e decepcionante) casa de madeira. As tábuas da varandinha tremiam, apesar de minha sensação de estar em pleno ar. Hoje, visito pela internet os lugares aonde vou. Sei o que me espera e não tenho mais surpresas. Também não tenho mais um coração disparado por decepções. Eis uma das atrações das parábolas. Como nas anedotas, você pensa uma coisa e ocorre outra. Tal como faz o governo que tributa todos os produtos e não nos dá nada de volta. Retribuir o que se recebe é, sabiam os antigos, um belo projeto...
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No livro Ardil 22, Joseph Heller fala de um certo coronel Cargill, marqueteiro convocado para a guerra, cuja especialidade era promover prejuízos em empresas que queriam pagar menos imposto de renda. Ou seja, o marketing de Cargill, ao contrário de alguns de nossos mais bem-sucedidos políticos - esses marqueteiros do povo pobre -, era vender fracasso num universo oficialmente marcado pela honestidade, pela competência e pelo progresso. Cargill perdia um tempo considerável planejando como fazer um empreendimento perder dinheiro para pagar menos imposto e multiplicava seu patrimônio porque, conforme se sabe, o fracasso - exceto, reitero, no submundo dos balcões que irmanam negócios e política no Brasil - não é fácil. Não é simples trilhar o caminho de cima para baixo. Ou seja: no tal "capitalismo avançado" e no mundo digital - armado em redes sem punho, onde balançamos todos solitariamente em frenética comunicação com um falso-outro que obedece à nossa vontade, podendo ser desligado (ou deletado) a nosso bel-prazer -, o fracasso deliberado pode ser o caminho do sucesso.
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A biografia de Machado de Assis, esplendidamente reinventada por Daniel Piza, surpreende e se destaca pelos exemplos de um Machado nada alienado como um mulato precursor do politicamente correto (como seus críticos de "esquerda" cansaram de apontar e por isso não li Machado na faculdade). Escritor consciente do sentido da parábola, algumas de suas histórias são máquinas de supressão do tempo como dizia Lévi-Strauss ao falar do sentido profundo dos mitos. Em Esaú e Jacó, por exemplo, temos uma definição estrutural do dilema brasileiro nos heróis gêmeos Pedro e Paulo. Um, dir-se-ia hoje em dia, de direita (e aristocrático), porque monarquista; o outro de esquerda (e igualitário), porque republicano. Mas como não há na sociedade o impulso da decisão, pois o que se aspira é ficar complementariamente com dois, não há a apoteose confessional que chega com a escolha. Movimento que equivale a tomar partido, admitir culpa e virar a página da História. Nossa revolução estaria na supressão dos adjetivos. Afinal, como diz Machado: "Os adjetivos passam e os substantivos ficam".
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Tal apoteose surge no caso noticiado pelo Globo e escrito pelo próprio autor no The New York Times, mas lá, nos Estados Unidos. Refiro-me à confissão calvinista do jornalista ianque-filipino Jose Antonio Vargas, premiado com a maior láurea da imprensa americana, o Prêmio Pulitzer. Num texto à la Frank Capra, ele narra sua saga como imigrante ilegal. Um burlador das leis de americanidade que são mais severas do que as que governam a vida mais recôndita. Lá, dizem eles, existem duas coisas certas no mundo: pagar imposto e morrer. Dizem também que mentir é o pior caminho e que ser honesto é o melhor negócio. É o único país do mundo com um primeiro mandatário que jamais mentiu, pois tal é o mito que cerca a figura do seu presidente inaugural, George Washington. Hoje, com tanta água suja correndo por baixo da ponte, poucos ainda creem nisso, mas as apoteoses confessionais que dramatizam o mito do "somente a verdade e nada mais do que verdade" continuam existindo.
O fato é que todo grupo tem suas parábolas, suas causas perdidas e, por meio delas, faz suas crônicas. Ou o inverso. Como um modesto observador da vida social, sei apenas que ninguém escapa dessas coerções que nos atingem como raios, de dentro para fora.
Indecentes úteis DORA KRAMER
Inicia-se discretamente uma dissidência no PMDB da Câmara. Dos 80 deputados, cerca de 20 andam contrariados com o líder Henrique Eduardo Alves e com o deputado Eduardo Cunha.
Virou praxe supervalorizar qualquer manifestação de boa educação por parte do governo Dilma como se os gestos fossem algo extraordinário, quando fora do comum era a falta de educação vigente no governo do antecessor.
Exorbitâncias do BNDES Editorial - O Estado de S.Paulo
Mais uma vez o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) está pronto para se meter numa aventura perigosa, injustificável sob todos os pontos de vista e claramente estranha - para não dizer contrária - ao interesse público. A instituição poderá aplicar uma soma equivalente a até 2 bilhões no projeto de fusão dos Grupos Pão de Açúcar e Carrefour, anunciado ontem oficialmente em São Paulo e em Paris. Aquele valor apareceu num breve informe divulgado ontem pelo banco. A fusão, segundo a nota do BNDES, abrirá caminho para maior inserção de produtos brasileiros no mercado internacional.
A justificativa é tão frágil e tão ou mais absurda do que as alegações apresentadas para seu envolvimento nas incursões internacionais do Frigorífico JBS e no socorro a outros grandes grupos brasileiros. Mas há várias novidades na operação agora em estudo. Se for concretizada, o maior banco de desenvolvimento do mundo ajudará um grupo estrangeiro a unir-se a um nacional numa fusão potencialmente danosa ao consumidor, sujeita a restrições dos órgãos de defesa da concorrência e passível de contestação pelo grupo francês Casino, atual sócio do Pão de Açúcar.
Segundo a Estater, empresa financeira responsável pela estruturação do negócio, o BNDESPar, braço de investimento do BNDES, entrará com 1,7 bilhão. A direção do banco, aparentemente, está disposta a um envolvimento maior, porque a nota de ontem menciona a aplicação possível de até 2 bilhões. De acordo com a informação divulgada pela Companhia Brasileira de Distribuição, sócia brasileira do Pão de Açúcar, o BNDES entrará com R$ 3,91 bilhões e o outro novo sócio, o Banco BTG Pactual, com R$ 690 milhões.
O BNDES já se meteu em vários negócios em que nunca deveria ter entrado e, além disso, tem privilegiado, em seus financiamentos, alguns dos maiores grupos do País, apesar de serem capazes de obter créditos privados tanto no exterior quanto no mercado financeiro nacional. Algumas das aventuras mais notórias foram as operações com grandes frigoríficos. Um deles enfrentou, depois, dificuldades financeiras. O outro se meteu em conflito com sócios na Itália, teve problemas nos Estados Unidos e precisou converter em ações as debêntures entregues ao banco.
Até aqui, o BNDES fez um papel deplorável em sua tentativa - a expressão é do economista Rodrigo Constantino - de criar uma Boibrás. A tentativa foi duplamente grotesca. Primeiro, porque a pecuária brasileira ganhou importância mundial, já há vários anos, sem esse tipo de intervenção. Segundo, pela incompetência negocial na condução dessas operações.
Mas o banco se meteu em outras aventuras, como o apoio à fusão de grandes grupos industriais em apuros. Como emprestador, já deixou ao relento muitas empresas pequenas e médias, preferindo favorecer as grandes e menos necessitadas de empréstimos oficiais, incluída a Petrobrás. De janeiro a abril deste ano, grandes empresas ficaram com 55% do valor desembolsado em financiamentos, mas esse dinheiro correspondeu a apenas 6% das operações.
Desta vez a diretoria do banco se dispõe a assumir riscos especialmente grandes. Juntos, Pão de Açúcar e Carrefour passarão a ter 1.202 pontos de atendimento em 178 municípios espalhados pelo País e controlarão 27% do setor de supermercados. Em defesa da fusão, o empresário Cláudio Galeazzi, sócio do BTG, cita o Grupo Walmart, que detém 32% do mercado americano e por isso ofereceria preços mais baixos. Resta ver a avaliação das condições de mercado pelos especialistas americanos.
O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) já examina vários casos de concentração no varejo, alguns com participação do Pão de Açúcar. Além disso, os efeitos da fusão serão analisados provavelmente sob a perspectiva regional e não só nacional. Mas o negócio envolve também outro tipo de riscos. Segundo dirigentes do Casino, a fusão viola um acordo assumido pelos acionistas brasileiros do Pão de Açúcar. Nada justifica o envolvimento do banco estatal e é até difícil entender o interesse de seus dirigentes. Agem por sua conta ou cumprem ordens? Seria oportuna uma resposta da presidente Dilma Rousseff.
Encruzilhada MIRIAM LEITÃO
A ideia é ruim, mas o pior é a justificativa: a de que se o Pão de Açúcar se juntar ao Carrefour, o BNDES deve dar a maior parte do dinheiro - R$ 2 bilhões - porque isso vai internacionalizar grupo brasileiro e abrir mercado para os nossos produtos. Balela.
Essa ideia é ruim para o consumidor, para o contribuinte e para a economia do País.
O que é desanimador no Brasil é a dependência que até os novos capitalistas têm do Estado. Eles não dão nenhum passo sem que o governo vá junto, não apenas financiando, mas virando sócio. Um capitalismo sem riscos, ou de lucros privados e prejuízos públicos.
Sempre foi assim, mas quando se vê um Eike Batista e um André Esteves, que poderiam ser a renovação dessa velha prática, repetindo os mesmíssimos caminhos que nos levaram a tanto problema no passado, a conclusão é que pelo visto o País vai demorar muito para chegar no verdadeiro capitalismo.
É um disparate completo o BNDES usar o dinheiro de dívida pública ou de fundos públicos para capitalizar uma operação estritamente privada. Ela será boa para o Carrefour, para os Diniz e para o BTG Pactual.
Não é verdade que o Pão de Açúcar será internacionalizado e vai virar um grupo global. Ele vai ter um pedaço de um grupo francês, que será vendido no dia em que a família Diniz quiser vender. O Pão de Açúcar vai deixar de existir como empresa independente e será desnacionalizado.
A família Diniz é dona do negócio e faz o que bem entender - e o que as regras concorrenciais do país permitirem - mas que não se venha com nacionalismos de ocasião. A conversa de internacionalização do grupo não convence.
O BTG Pactual também pode montar a operação que quiser no mercado. O estranho é por que um grupo que tem condições de captar no mercado internacional precisará que o BNDES entre de sócio e dê até R$ 4,5 bilhões para o negócio.
O grande perdedor será o consumidor brasileiro, que tem enfrentado uma concentração cada vez maior do grande varejo. O número de 27% do mercado brasileiro é enorme em si. Mas pode ser até maior. Está se somando bananas e laranjas.
Pequeno varejo de empresas disseminadas pelo interior do Brasil, com o mercado dos grandes supermercados e hipermercados das capitais. Com a lentidão com que o Cade trabalha, no dia em que ele se pronunciar - e ainda mais num negócio que terá como sócio o próprio Estado brasileiro - tudo já estará consolidado.
Nos últimos anos o Tesouro já se endividou em R$ 260 bilhões - incluindo os R$ 30 bilhões deste ano - para financiar o BNDES nas suas operações. E elas fazem cada vez menos sentido. Por que o banco deve fazer seguidas capitalizações, comprar tantas debêntures ou ações do grupo JBS-Friboi, por exemplo?
Por que o Estado brasileiro precisa ser sócio de frigorífico? E pior: um frigorífico que diz - como me disse o presidente do Conselho de Administração do JBS-Friboi, Joesley Batista, no dia 28 de abril - que não pode garantir que a carne que comercializa é livre de desmatamento ilegal.
A empresa contraria a tendência atual do capitalismo no mundo, que é o de ser responsável por fiscalizar sua cadeia produtiva.
O BNDES justifica o fato de ter "enquadrado para a análise" a possibilidade de entrar na operação Carrefour-Pão de Açúcar com o argumento de que vai abrir mercado para o produto brasileiro. Convenhamos. O produto brasileiro terá mais espaço no mercado internacional se houver mais investimento em logística eficiente, se houver redução do Custo Brasil, e se as empresas tiverem boas práticas.
Para a carne brasileira ter maior penetração no mercados europeu não é necessário que o BNDES seja sócio de supermercado francês, mas sim que o setor cumpra regras de rastreamento sanitário. O mercado internacional precisa ser conquistado com uma redução do custo do transporte dos produtos brasileiros e com boas práticas de certificado de origem, rastreamento, comprovações que o mundo atual tem feito cada vez mais.
Essa operação já nasceu esquisita. O sócio Casino na Companhia Brasileira de Distribuição disse que suspeitava que o Pão de Açúcar estivesse negociando nas suas costas com o Carrefour. O acordo que tem com seus sócios brasileiros impedia a negociação. As suspeitas se confirmaram. E isso é mais uma razão pela qual o banco estatal brasileiro não deveria entrar no negócio.
Mas o mais importante motivo pelo qual não se deve haver dinheiro subsidiado ou de endividamento público no negócio é que ele é ruim para a economia e para o consumidor nacional. O distinto público não tem nada a ganhar com ele.
Os neocapitalistas brasileiros deveriam usar toda a criatividade que têm para fazer negócios longe da sombra do Estado. Em vez disso, confirmam a velha dependência crônica.
A palavra "carrefour" é ótima para nos lembrar que o país está numa encruzilhada: ou vai continuar fortalecendo o capitalismo estatizado sem risco, que é bom apenas para alguns poucos, que concentra a renda e socializa o prejuízo; ou vai incentivar a competitividade, a inovação, a concorrência e as práticas sustentáveis da nova economia.
Sem convencer Merval Pereira
Derrotado pela segunda vez para o governo de São Paulo, Mercadante ganhou de consolação o Ministério da Ciência e Tecnologia, que era um feudo político do PSB, e agora está às voltas com as críticas de um importante aliado do Planalto.
Ontem, no depoimento da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, onde tentou negar sua participação no episódio do dossiê dos aloprados contra José Serra na eleição de 2006, Mercadante se viu novamente diante de críticas do senador Francisco Dornelles, do PP do Rio.
Ele fez questão de avisar a Mercadante que não apoiaria um pedido de investigação a seu respeito, diferentemente do que fizera Mercadante quando José Sarney e Renan Calheiros, aliados do PMDB, estiveram sob fogo cruzado da oposição e o petista, líder do governo no Senado, piscou.
Na votação para salvar Renan Calheiros da cassação no plenário do Senado, ele se absteve e deu o sinal para que sua bancada seguisse o caminho que aparentemente era o mais fácil para cumprir as determinações do Planalto e não sujar as mãos publicamente.
Não ganhou o reconhecimento de Renan Calheiros, e perdeu credibilidade diante dos seus eleitores.
De outra vez, quando tentou uma manobra mais coerente com seu discurso e anunciou sua renúncia "irrevogável" em protesto contra a defesa do senador José Sarney pelo governo, a direção nacional de seu partido passou por cima dele como um trator, desautorizando-o publicamente, seguindo orientação pessoal do então presidente Lula.
Diante da reação pessoal de Lula, e depois de uma conversa de 5 horas com o então presidente, Mercadante deu o dito por não dito e revogou a irrevogabilidade de seu ato.
A versão de Mercadante, de que fora uma conversa "amiga e franca, relembrando momentos históricos dos últimos 30 anos", segundo versão mais crua vazada por fontes do próprio partido fora, na verdade, um "puxão de orelhas" do presidente Lula em seu pupilo, a quem teria dito: "Não dá para vacilar diante do primeiro embate. As alianças têm duas mãos".
O episódio dos aloprados na eleição de 2006, em que um grupo de petistas comprou dossiês contra José Serra, então seu adversário ao governo de São Paulo, e Geraldo Alckmin, candidato tucano à Presidência, já marcara sua vida política, pois seu principal assessor era o comandante da operação ilegal que ele alega até hoje ter sido montada à revelia.
Pois, como disse o senador Dornelles, "nada como um dia depois do outro". Mercadante, segundo revelação do burocrata petista Expedito Veloso, foi um dos líderes dos aloprados.
Quem se der ao trabalho de ouvir a gravação da conversa de Expedito com amigos petistas no site da revista "Veja", que divulgou a informação, verá que não há dúvida de que toda a operação partiu da necessidade de Mercadante de criar um fato político que levasse a disputa com Serra para o segundo turno, ocasião em que Orestes Quércia, que também financiou o dossiê, o apoiaria em troca de "um naco" do governo.
Expedito Veloso, hoje um assessor graduado do governo petista de Brasília, é didático na sua conversa gravada, e culpa Mercadante pelo fracasso da operação.
Segundo ele, se Mercadante não tivesse mentido dizendo que o dinheiro já estava todo arrecadado, Valdebran Padilha, um dos aloprados que foi a São Paulo juntamente com Hamilton Lacerda para comprar o dossiê, não teria sido preso.
Os aloprados, no entanto, tiveram que ficar quatro dias em São Paulo, e não duas horas como previsto, esperando que o dinheiro chegasse, e essa movimentação teria chamado a atenção da Polícia Federal.
Embora Mercadante afirme que a participação de Lacerda, seu braço direito na campanha, acontecera à sua revelia, Expedito, na conversa gravada, explica o raciocínio político por trás da compra do dossiê, ficando claro que a manobra correspondia a uma estratégia petista para beneficiar Mercadante.
Tanto é verdade que, na gravação, Expedito revela um "trabalho" anterior dos aloprados petistas, a divulgação de dossiês contra a ex-senadora petista Serys Slhessarenko e o tucano Antero Paes de Barros pelo ex-deputado federal Carlos Abicalil, hoje secretário de Educação Especial do MEC, cujo sucesso os levou a arquitetar o plano contra Serra.
E explica a ligação: "O Valdebran (Padilha) foi coordenador financeiro do Abicalil".
O petista já tentara desqualificar a gravação obtida pela "Veja", alegando que Expedito emitira nota negando tudo.
O que Expedito diz na nota é que nunca revelou nenhum nome em seus depoimentos, o que pode ser verdade. Ele só citou Mercadante e os demais envolvidos na tramoia em conversas informais, que foram gravadas e cujo conteúdo ele confirmou ser verdadeiro.
Outra revelação, a de que a atual ministra das Relações Institucionais Ideli Salvatti, então líder do PT no Senado, participou de reuniões sobre o dossiê e ajudou a divulgá-lo extraoficialmente para alguns jornais, é desmentida pela metade.
Ideli admite que participou de reuniões no gabinete de Mercadante, com a presença de diversos dos aloprados, mas alega que o assunto era outro.
Com o governo dominando tão amplamente a Câmara e o Senado, dificilmente o assunto vai render. Resta a reabertura do processo pelo Ministério Público ou pela Polícia Federal, diante das novas evidências.
A pergunta ANTONIO DELFIM NETTO
Talvez seja bom recordar alguns preliminares:
1) Nossa memória é curta e nosso entusiasmo é grande. Esquecemos que "quebramos" duas vezes nos últimos 16 anos (1998 e 2002) e fomos socorridos pelo FMI para honrar nossos compromissos externos, o que garantiu a continuidade de nossa democracia;
2) Todas as crises que abortaram o crescimento do Brasil nos últimos 50 anos foram produzidas por dificuldades no financiamento do deficit em conta-corrente ou por uma crise de energia;
3) A grande mudança da situação externa não foi resultado de particular melhoria na política macroeconômica. Foi consequência da expansão mundial (da China, especialmente), que aumentou a demanda dos produtos que estávamos preparados para exportar (alimentos e minérios), cujos preços beneficiaram-se, adicionalmente, de um fantástico aumento. Parte importante de tal aumento deve-se à desvalorização do dólar promovida pela política monetária americana.
Tais setores são poupadores de mão de obra. Suas cadeias de serviços são suscetíveis de serem ampliadas, mas absolutamente incapazes de dar resposta à grande pergunta.
É uma grave ilusão supor que nada vai mudar nos próximos 20 anos. A "oferta" de alimentos e minérios está sendo estimulada em quase todos os países, inclusive pela própria China. Não existe, portanto, razão para acreditar que o nosso modelo agromineral-exportador induzido seja bem sucedido no longo prazo.
Além do mais, quem pode garantir que a China manterá, por mais 20 anos, a estrutura política atual (que já dá alguns sinais de fadiga)?
A alegre aceitação dessa "nova" divisão internacional do trabalho (para a China a indústria, para a Índia os serviços e para o Brasil alimentos e minérios) põe em risco o futuro da economia brasileira como necessário instrumento de construção de uma sociedade mais justa, com pequeno desemprego e suficiente emprego de boa qualidade em 2030.
Precisamos aproveitar a oportunidade (os bônus!) dos setores agrícola e mineral (o pré-sal) para nos livrar da trágica dependência externa e impedir que o pré-sal nos leve a outra dependência.
O que precisamos mesmo para responder à grande pergunta é continuar a aproveitar com inteligência os dois "bônus" e dar condições isonômicas a nossos empresários e trabalhadores para que construam o mercado interno que vai assegurar os bons empregos para nossos filhos e netos.
A Europa compra tempo Celso Ming
Estado de S. Paulo - 29/06/2011 |
Enquanto os manifestantes fazem protestos no Sintagma de Atenas (praça da Constituição) e prossegue a greve geral de 48 horas, o Congresso da Grécia se reúne de hoje até o final desta semana para examinar o plano de sacrifícios negociado pelo primeiro-ministro George Papandreou com o Fundo Monetário Internacional e os chefes de Estado da área do euro. Esse duro plano de austeridade se resume a aumento da arrecadação (com elevação de impostos e privatizações) e redução das despesas, especialmente com demissões de funcionários públicos. Uma Taxa Solidária incrementará os impostos sobre a renda entre 1% e 5% e reduzirá em 33,3% o limite de isenção. A taxação de bares e restaurantes aumentará de 13% para 23% e os bens de luxo também serão sobretaxados. Os principais portos (o do Pireu e o de Salonica) serão privatizados. O total arrecadado com a privatização deverá alcançar 50 bilhões de euros até 2015. Nos próximos quatro anos será colocada em marcha as demissões de 150 mil funcionários públicos (20% do total). Além disso, os salários dos funcionários que permanecerão a postos serão submetidos a cortes, cujas proporções ainda serão anunciadas. As aposentadorias, pensões e outros benefícios sociais também serão reduzidos. Os analistas apostam em que, apesar dos protestos e da atual demonstração de má vontade por parte dos políticos, esse plano de austeridade acabará passando no Congresso. A maioria com que hoje conta o governo de Papandreou é frágil. Bastaria que cinco ou seis mudassem de lado para que o plano fosse rejeitado. Por isso, imagina-se que o governo já deva ter providenciado algum novo argumento capaz de convencer os representantes do povo. Enquanto isso, os governos da França e da Alemanha seguem enquadrando os seus bancos para que aceitem "voluntariamente" a rolagem, por mais 30 anos e a juros camaradas, de pelo menos 70% dos seus ativos em títulos da Grécia. Se o plano passar no Congresso e se os bancos forem voluntariamente convencidos - sabe-se lá a troco de que compensações - a Grécia, que perdeu o acesso aos financiamentos bancários, receberá os 12 bilhões de euros em empréstimos novos correspondentes à nova tranche do primeiro resgate de 110 bilhões de euros. E, em 2013, novo pacote em empréstimos de US$ 100 bilhões de euros terá de ser providenciado, desta vez pelo Mecanismo Europeu de Estabilidade (ESM, na sigla em inglês). Apesar de tudo, não dá para contar com a volta definitiva do equilíbrio fiscal para a Grécia. Essa operação tem por objetivo manter a respiração da economia. Apesar dos sacrifícios do povo grego, do aumento da arrecadação e das operações de privatização, não ficará garantida ainda receita suficiente para o pagamento da dívida hoje, de 160% do PIB. Tudo se passa como se a União Europeia (e não apenas o bloco do euro) esteja se empenhando para montar um enorme aparato que dê a impressão de que algo de substancial está sendo feito para evitar uma quebra descontrolada da Grécia e, dessa maneira, evitar a contaminação e manter à tona também as economias de Portugal, Irlanda e, possivelmente, também de Itália e Espanha. Enfim, trata-se de ganhar tempo e, assim, evitar um desastre imediato, para que os dirigentes consigam montar esquemas que, mais à frente, possam dar um mínimo de consistência à área do euro. CONFIRA Não há concentração? Dinheirama pública Balela |
Regime diferenciado e imoral José Serra
O Globo - 29/06/2011 |
A imprensa, a oposição e os meios jurídicos têm enfatizado o caráter perverso da tentativa do governo de estabelecer o sigilo dos preços máximos de obras que balizam a apresentação de propostas nas concorrências públicas. O Planalto se defende dizendo que esse sigilo criaria mais incerteza para as empresas concorrentes, dificultando eventuais conluios entre elas. Assegura-se, ainda, que os referidos preços seriam registrados pelos órgãos de controle - presumo que sejam os tribunais de contas. Sinceramente, não consigo compreender por que essa medida produziria ganhos significativos para o governo, mas posso, sim, entender o valor que teria um vazamento seletivo de informações para o setor privado, a manipulação a que isso se presta e o incentivo que representaria para a corrupção no governo. Do mesmo modo, não será difícil prever a sombra de suspeições que tornaria ainda menos transparente do que já é todo o processo de licitações de obras nas três esferas de governo no Brasil. Digo "três esferas de governo" e mencionei acima "tribunais de contas", no plural, porque as mudanças que o governo pretende na lei de licitações valerão ou acabarão valendo, também, para todos os estados e municípios do Brasil, cujos investimentos públicos, somados, são superiores aos do governo federal. Isso não tem sido levado em sua devida conta. Outra mudança, alarmante, enfraquecerá ao infinito a possibilidade de fiscalização de obras, o controle da sua qualidade e dos seus custos. Isto porque o novo regime de concorrência elimina a necessidade da apresentação de projetos básicos para as obras licitadas e, evidentemente, de projetos executivos. Mais ainda, acreditem: cada uma das empresas concorrentes pode apresentar o seu projeto, propor as suas soluções - um estádio quadrado, trapezoidal, espiralado, elíptico, oval, aéreo, subterrâneo -, que envolverão custos diferentes. E o poder público poderá escolher aquele de que mais gostar, mesmo que o preço seja mais elevado. Corresponde à liberdade que você teria, leitor, se estivesse construindo uma casa, com uma ligeira diferença: você estaria fazendo isso com o seu próprio dinheiro, não com o dinheiro dos contribuintes; você, sim, é livre para satisfazer o seu próprio interesse; o governo tem de atender ao interesse público. O que começa a ficar claro é que as obras da Copa e das Olimpíadas estão servindo de pretexto para a instauração de um sistema absolutamente arbitrário, que acabará valendo para todas as obras contratadas pelos poderes públicos no Brasil: de estradas em qualquer parte a projetos alucinados, como o do trem-bala. Com um aditivo: o ingresso no tal do Regime Diferenciado de Contratações Públicas terá um preço monetário ou político, ou ambos, evidentemente. Creio que, apesar das críticas enfáticas de muitos, a abrangência do desastre institucional da medida provisória do governo federal está sendo subestimado. Essa verdadeira tsunami jurídica nos levaria ao padrão das antigas republiquetas da América Central e Caribe, governos à moda Somoza ou Trujillo. Ou será que se imagina que o regime brasileiro poderá seguir o modelo chinês, onde, supostamente, o Estado é o patrão de tudo e faz uma hidrelétrica como os leitores fazem suas casas? Não custa notar: vigora lá uma ditadura. Felizmente, esse mal ainda não temos aqui. |