sábado, abril 12, 2003

Diogo Mainardi Enfim, como diria Gil...

"Lula atribuiu-se o mérito de ter
salvado a economia. Como os índices
só haviam piorado porque acreditaram
em suas bravatas, não há do que se
gabar. Ele só consertou um pouco
do estrago que havia feito"

Gilberto Gil almoçou na Associação Comercial do Rio de Janeiro. Depois do almoço, discurso. Depois do discurso, entrevista coletiva. Depois da entrevista coletiva, deslocamento para a Biblioteca Nacional. Outro discurso. Não sei para onde Gil foi depois disso. Desisti de segui-lo. Cansei. Durante o almoço, Gil revelou gostar da vida de ministro. Há algo de errado em quem gosta da vida de ministro.

Entre uma coisa e outra, acompanhei Gil por cerca de cinco horas. Não consegui colher uma única declaração aproveitável. No discurso da Biblioteca Nacional, por exemplo, a propósito de um dicionário de música popular brasileira, ele citou Octavio Paz, que teria escrito sobre a "suspensão no ar, na atmosfera, no éter, de signos, símbolos, microrganismos, partículas, células, em extraordinária rotação sobre nossas cabeças, que são os verbetes, em seu próprio suporte, as palavras, com todos os seus interstícios, em suas materializações nos livros...". Preciso reler Octavio Paz urgentemente. Nesse ponto do discurso, perdi a concentração. Deixei de transcrevê-lo. Para passar o tempo, comecei a contar quantas vezes Gil empregava a interjeição "enfim". Foram dezessete.

Bem melhor do que ouvir um discurso de Gil é ouvir um de Lula. Nunca houve, em nossa história, um presidente que falasse tão claro quanto ele. Poucos dias atrás, em Barcarena, no Pará, Lula disse que o Brasil foi castigado por políticos que pensam apenas em seu mandato. No mesmo discurso, ele demonstrou que, como o resto dos políticos, pensa apenas em seu mandato, reivindicando mais quatro anos no poder. Ou seja, 100 dias depois da posse, já estamos novamente em campanha eleitoral. E podemos contar com um presidente que, segundo sua própria definição, se considera um castigo para o país.

Na semana anterior, Lula havia declarado algo ainda mais espantoso. Ele reconheceu que, quando estava na oposição, disparava bravatas o tempo todo. Indiretamente, ele chamou seus eleitores de otários. Porque quem acredita em bravatas só pode ser otário. Lula está certo, claro. Porém é surpreendente que ele tenha a coragem de debochar de seus eleitores em público, de forma tão ostensiva. Nem o mais brucutu dos coronéis nordestinos trataria seu curral eleitoral com tanto desdém. Estou começando a desconfiar dessa história de que Lula saiu de Pernambuco num pau-de-arara. Ele deve ter algum parente latifundiário em Garanhuns.

Na segunda-feira, em cadeia nacional, Lula traçou um balanço de seus primeiros meses de governo. Atribuiu-se o mérito de ter salvado a economia, melhorando câmbio, balança comercial e risco país. Como esses índices só tinham piorado porque os investidores acreditaram em suas bravatas, não há do que se gabar, visto que ele se limitou a consertar um pouco do estrago feito anteriormente. Com muito laquê e piscando o olho esquerdo sem parar, Lula levou cinco horas para extrair nove minutos de programa. Pois eu passei cinco horas com Gil e extraí ainda menos. Ponto para Lula.

domingo, abril 06, 2003

Diogo Mainardi A comédia da fome


O Iraque será reconstruído pelas mesmas empresas que construíram o Brasil. A Halliburton, por exemplo, quando ainda era comandada pelo atual vice-presidente americano, Dick Cheney, construiu o gasoduto Brasil–Bolívia. A Bechtel também foi convidada para repartir o bolo bilionário da reconstrução iraquiana. Em suas atividades no Brasil, a Bechtel ergueu desde usinas elétricas até fábricas de meias de náilon, mas seu nome é recordado, sobretudo, pelos reatores nucleares de Angra dos Reis. A Fluor, cujo nome é associado à instalação de grandes siderúrgicas e fábricas de automóveis no Brasil, irá participar, igualmente, da boca-livre iraquiana, da mesma forma que a Washington Group International, a empreiteira responsável, entre nós, pelas obras da hidrelétrica de Itaipu. Tudo indica, portanto, que o Iraque, depois da guerra, ficará igual ao Brasil. Bagdá será uma réplica exata de Teresina. Basra, uma réplica de Francinópolis. Nassiriah, uma réplica de Guaribas.

O trabalho de reconstrução do Iraque será coordenado pela Usaid, a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional. Andrew Natsios, seu diretor, ficou conhecido no mundo todo por ter declarado, algum tempo atrás, que os africanos não deveriam receber remédios contra a Aids porque nem sabiam ler as horas. A Usaid sempre foi muito ativa no Brasil. Em 1964, depois do golpe militar, mandou seus técnicos para cá e reformou nosso ensino, do primário até a universidade. Se aplicar a mesma receita educacional no Iraque, conseguirá dobrar o número de analfabetos em poucos anos. Até hoje a Usaid financia programas assistenciais no Brasil, ligados à preservação da floresta tropical, à prevenção da tuberculose e à luta contra a exploração sexual de crianças. Durante a viagem de Lula aos Estados Unidos, cogitou-se inclusive de a Usaid ajudar no Fome Zero.

Não que o Fome Zero precise de ajuda. As melhores mentes do governo já estão engajadas no projeto. Outro dia, o Ministério da Cultura anunciou que pretende oferecer incentivos fiscais aos produtores que se dispuserem a rodar seus filmes em regiões carentes, usando mão-de-obra e figurantes locais. Depois do bolsa-escola, bolsa-renda, bolsa-alimentação, bolsa-criança cidadã e bolsa-qualificação profissional, agora também querem lançar o bolsa-figuração. Guaribas vai virar um pólo cinematográfico, a futura Hollywood do agreste. O único inconveniente é que nordestinos famintos só servem para interpretar nordestinos famintos. Ficam um pouco inverossímeis em outros papéis. Temo que, nos próximos anos, tenhamos de assistir a uns dezoito filmes sobre Antônio Conselheiro e Canudos. Mas nunca se sabe. Pode ser que surja um novo Marlon Brando por lá. Ou um novo Fred Astaire, que revolucione o gênero musical. Se a experiência de implantar um pólo cinematográfico em Guaribas der certo, os técnicos do Ministério da Cultura, em direta concorrência com os da Usaid, podem ajudar a implantar um em Nassiriah, transformando-a numa Hollywood do deserto. Será nossa contribuição desinteressada para a reconstrução do Iraque. O problema da fome, pelo menos, estará resolvido. Tanto aqui como lá.