sábado, janeiro 24, 2004

Diogo Mainardi O pior é melhor


"É uma sorte que São Paulo seja tão pouco
musical. A música popular constitui o maior
fator de atraso no Brasil. Quanto mais musical
é uma região, mais subdesenvolvida ela é"

Desde cedo a única meta que eu tinha na vida era ir embora de São Paulo. Fracassei em minha primeira tentativa migratória. Fracassei na segunda. Na terceira, deu certo. Fui embora e nunca mais voltei.

Depois de tantos anos de afastamento, finalmente me reconciliei com a cidade. Aprendi a reconhecer seus méritos. O maior deles é despertar o sentimento de repulsa em seus habitantes. São Paulo é tão detestável que somos estimulados a rejeitar nossa origem, a buscar lá fora o que não podemos encontrar aqui dentro. Parece pouco. Não é. São Paulo não acomoda. Ela nos deixa num permanente estado de insatisfação e precariedade. O paulistano não é apegado a nada. Está sempre de malas prontas, disposto a abandonar oportunisticamente tudo o que lhe pertence: sua cidade, seu país, sua família, suas idéias. Não temos o sentido de coletividade: não sabemos votar, não sabemos respeitar as regras, não sabemos pensar no próximo, não sabemos cumprir os acordos. Em compensação, conseguiríamos nos adaptar com facilidade a um holocausto nuclear. Pena que a perspectiva de um holocausto nuclear seja cada dia mais remota.

A música é o mais importante elemento de identidade nacional. Em São Paulo, a falta de sentido de coletividade nos impediu de desenvolver um estilo musical. Ao contrário do resto do Brasil, não temos ritmos próprios, não temos artistas de peso. Nosso ouvido é duro. Na festa de aniversário da cidade, o melhor que conseguimos apresentar foi o grupo Demônios da Garoa. Caetano Veloso também homenageou a cidade, mas ele não conta, porque é baiano e, sobretudo, porque homenageia qualquer lugar. Ele já homenageou Londres, Barcelona, Nova York, São Francisco e Brasília. Já homenageou até TelAviv. Caetano Veloso é como Lamartine Babo, que escreveu os hinos de todos os times de futebol do Rio de Janeiro.

É uma sorte que São Paulo seja tão pouco musical. A música popular constitui o maior fator de atraso no Brasil. Quanto mais musical é uma região, mais subdesenvolvida ela é. A musicalidade dos brasileiros está diretamente relacionada com as epidemias de leishmaniose, os esgotos a céu aberto, os desmoronamentos de favelas. São Paulo é a cidade mais rica do Brasil simplesmente porque não entende nada de música, porque não fica sentada em banquinho de violão. Os compositores de música popular, agora, publicam livros com todas as suas letras. Quem consegue compreender o significado dessas letras nunca irá aprender a construir uma ponte, ou a planejar o escoamento de um milharal, ou a obturar um dente cariado. Um conhecimento anula o outro.

O Brasil se reconhece no sentimentalismo mais ordinário, no verso mais incongruente, na batida mais simplória. Fomos ensinados que a música nos ajudou a resistir a todos os tipos de autoritarismo. Mentira. A música é um instrumento de dominação. Tanto que todos os partidos políticos criam seus sambinhas para o horário eleitoral. Se até o PTB tem seu sambinha, é sinal de que há algo errado na MPB.

São Paulo é a pior cidade do Brasil. Mas nós, paulistanos, até que temos a nossa graça: não levamos jeito para a música, o que nos torna, tudo somado, um pouco menos brasileiros.

sexta-feira, janeiro 02, 2004

Diogo Mainardi Abacaxi com caroço


"Quando alguém quer provar que o Brasil
tem saída, sempre menciona Machado de
Assis, como se um único escritor resgatasse
séculos de falta de talento. Ele virou um álibi
para o nosso fracasso"

Caetano Veloso me chamou de abacaxi com caroço. Foi numa entrevista coletiva para promover o lançamento de um DVD. Ele passou metade da entrevista falando mal de mim e de Paulo Francis. Como falar mal de nós não ajuda a vender DVD, acredito que tenha sido apenas uma maneira dissimulada de bajular o governo.

Para Caetano Veloso, represento a parte deteriorada da cultura brasileira. Um derrotista, um entreguista, um colaboracionista, pronto a acolher o usurpador estrangeiro. Junto com Paulo Francis, de quem sou um mero subproduto, formo o time dos traidores da pátria. Do lado oposto, defendendo o escrete canarinho, Caetano Veloso, imodestamente, escalou a si mesmo, em companhia de Machado de Assis, Glauber Rocha e Chico Buarque. Encontram-se aí, segundo ele, as duas correntes contrapostas do pensamento nacional: os americanófilos que condenam o Brasil a uma posição de eterno servilismo e os artistas que, com suas obras, colocam o país no centro do mundo.

Caetano Veloso está certo, claro. Meu maléfico plano é derrubar o presidente e transformar o Brasil num protetorado americano. Quanto mais dependente, melhor. Em minha empreitada, tiro de letra o próprio Caetano Veloso, Glauber Rocha e Chico Buarque. Difícil é enfrentar Machado de Assis. Quando alguém quer provar que o Brasil tem saída, sempre menciona seu nome. Como se um único escritor resgatasse cinco séculos de falta de talento. De geração em geração, Machado de Assis renova a crença em nossas capacidades, como se suas conquistas individuais, isoladas, pudessem indicar atributos coletivos. Ele virou um álibi para o nosso fracasso.

Eu nunca havia considerado Machado de Assis como um inimigo. Ingenuamente, aliás, eu supunha que ele estivesse do nosso lado, comandando o nosso time, na qualidade de o maior e o mais prestigioso abacaxi com caroço do Brasil. Basta ver a maneira impiedosa como ele retrata nossos compatriotas em seus últimos livros. Uma gente mesquinha, boçal, parasitária, que combina pieguice com selvageria. Ninguém trabalha, exceto os escravos, que só aparecem como moeda de troca. Os ideais que circulam nos meios intelectuais são um pastiche grotesco daquilo que os europeus enterraram no século anterior. Machado de Assis jamais demonstrou grande fé no futuro do Brasil. Na verdade, ele era de um ceticismo que beirava o reacionarismo. Desconfiou de todas as transformações ocorridas em sua época, como a abolição da escravatura e a proclamação da República. Nunca se deixou contaminar pelo otimismo panglossiano dos brasileiros, evitando aquela euforia irracional que, ao longo de nossa história, sempre resultou em alguma forma de abuso.

Como se sabe, existe outro Machado de Assis: o politiqueiro e conchavista da Academia Brasileira de Letras, entranhado fisiologicamente nas instituições do Estado, acovardado diante do poder político. Esse Machado de Assis brejeiro não me interessa. Caetano Veloso pode ficar com ele.