sábado, janeiro 18, 2003

Diogo Mainardi Corrente chapa-branca

"No novo Brasil lulista, os bons sentimentos afundam na demagogia, os bons propósitos esbarram no corporativismo, os bons princípios camuflam a incompetência, os bons auspícios manifestam um otimismo cabalístico"

Decidi passar seis meses por ano no Rio de Janeiro. Tem mais a ver com a fisioterapeuta do meu filho do que com a cidade em si. Aos poucos, porém, vou me acostumando à vidinha carioca. Até comecei a ler os cronistas locais. Em particular, Zuenir Ventura. Como pude sobreviver esse tempo todo sem ele? Zuenir Ventura virou meu guia, meu oráculo. Recorto seus artigos e releio-os compulsivamente, várias vezes por dia. De tudo o que ele diz, eu digo o contrário. De tudo o que ele faz, eu faço o contrário. É a coisa mais cômoda que existe. Basta ver como ele se posiciona e, sem parar para pensar, escolher o lado oposto. É bom viver sem pensar.

Outro dia, por exemplo, Zuenir Ventura elogiou o hábito dos banhistas de Ipanema de aplaudir o pôr-do-sol. Desde então, quando ouço os aplausos da janela de meu apartamento, sinto vontade de arrumar as malas e ir embora daqui. Carioca é meio caipira. Aplaudir o pôr-do-sol é pior do que aplaudir aterrissagem de avião. A linguagem hiperbólica de Zuenir Ventura só reforça o mal-estar: "Atordoados pela beleza, deslumbrados com o delírio de luz e cor, os banhistas permanecem em contrito silêncio, observando a enorme bola de fogo realizar sua lenta e cuidadosa descida". Em Ipanema, o sol se põe atrás da favela do Vidigal. Zuenir Ventura descreve a cena como uma autêntica "visão do paraíso". Para mim, o paraíso tem esgoto e água encanada. E não é do Comando Vermelho.

Para Zuenir Ventura, o pôr-do-sol da primeira terça-feira do ano foi ainda mais espetacular do que o normal. Depois de consultar especialistas em meteorologia, concluiu que o fenômeno estava diretamente relacionado com a transição política do país. O pôr-do-sol de Ipanema se tornou uma espécie de estrela de Belém, anunciando o início de uma Nova Era. Ignoro qual seja o significado simbólico para o fato de, desde aquele dia, ter chovido sem parar no Rio de Janeiro. Zuenir Ventura está muito esperançoso com o governo Lula. Tanto que já o definiu como "histórico". É esquisito que alguém faça julgamentos históricos antecipadamente. Que eu saiba, a história só pode ser escrita depois dos acontecimentos. Trata-se, no máximo, de uma aposta. Se Zuenir Ventura aposta a favor do governo, sou obrigado a apostar contra. Todas as minhas fichas no preto, croupier.

Concordo que é um despropósito cismar com Zuenir Ventura. Ele parece ser uma pessoa afável, generosa, simpática, disponível, amiga. Fala bem de todo mundo e, mesmo quando assume um tom indignado, continua inócuo. O problema é que passei a identificá-lo com os aspectos mais irritantes do novo Brasil lulista: os bons sentimentos afundam na demagogia, os bons propósitos esbarram no corporativismo, os bons princípios camuflam a incompetência, os bons auspícios manifestam um otimismo cabalístico. Como a maior parte dos brasileiros, Zuenir Ventura aderiu a essa corrente para a frente, a essa corrente de Santo Antônio chapa-branca. Espero que a tal lua-de-mel com o governo acabe logo. Cansei de ver gente aplaudindo o pôr-do-sol. Cansei de ler artigos sobre bursite.